O messias que religa os evangélicos a Nossa Senhora
Evangélicos brasileiros forjaram sua identidade no anticatolicismo, mas a pauta antiprogressista os reconciliou com os católicos para permitir a criação do camaleão religioso
Não vou prometer falar sobre mais nenhum tema, porque esta eleição está indo mais à igreja que as senhorinhas mais fervorosas das igrejas que já frequentei (em compensação, as senhorinhas de oração da igreja agora estão mesmo é no zap compartilhando fake news).
No fim de semana, Bolsonaro resolveu comparecer ao Círio de Nazaré, participando da romaria fluvial no navio da Marinha que conduziu a imagem de Nossa Senhora do Nazaré pela baía do Guajará1. Dom Alberto Taveira, arcebispo metropolitano de Belém, escreveu em nota:
"Tomamos conhecimento da presença do senhor presidente da república, Jair Bolsonaro, na corveta da marinha Garnier Sampaio durante a Romaria Fluvial. Comunicamos não ter havido nenhum convite da parte da arquidiocese, nem da diretoria da festa de Nazaré, a qualquer autoridade - seja ao nível municipal, estadual ou federal. Entretanto, reconhecemos ser responsabilidade da Marinha do Brasil o acesso à referida embarcação. Temos o dever de observar a plena liberdade de qualquer cidadão ou cidadã de participar dos eventos do Círio de Nazaré. Todavia, não desejamos e nem permitimos qualquer utilização de caráter político ou partidário das atividades do Círio".
Hoje, no feriado da Padroeira, ele foi a Aparecida para a comemoração do dia de Nossa Senhora Aparecida na basílica da cidade, ao lado do candidato ao governo de São Paulo e seu ex-ministro, o carioca Tarcísio Freitas2.
Bolsonaro não comungou, ou seja, não tomou a hóstia, ao contrário do que fez em outros anos. O presidente também cogitou rezar um terço organizado por católicos do Centro Dom Bosco3, que não vou comentar aqui porque posso evitar esse constrangimento e prefiro, em algum momento, convidar um amigo católico para falar sobre a visão ortodoxa católica sobre o grupo e sua atuação controversa. Antes da missa de que Bolsonaro participou, Dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida, havia dado um recado a Bolsonaro sobre a necessidade de ter uma identidade católica.

À tarde, foi possível ver vídeo do arcebispo sendo vaiado na frente da basílica, enquanto alguns entoavam o grito de “mito, mito”.
Vou tomar a fala de dom Orlando Brandes para comentar a relação entre católicos e evangélicos no Brasil. É especialmente interessante que hoje um arcebispo precise enunciar “nós precisamos ter uma identidade religiosa, né? Ou somos evangélicos ou somos católicos. E então nós precisamos ser fiéis à nossa identidade católica”. O recado vai ao encontro da fala de Paul Freston que comentei em post recente chamando Bolsonaro de “candidato híbrido ideal” e “primeiro presidente pancristão”. Mas essa é uma realidade estranha demais para quem cresceu como minoria evangélica num país majoritariamente católico, especialmente se cresceu no interior, como eu, onde o anticatolicismo era a norma entre evangélicos.
Obviamente o anticatolicismo é uma marca fundante do protestantismo. Embora Martinho Lutero resistisse a fundar uma igreja nova, ele iniciou um movimento de revolta contra o Papa ao criticar a hierarquia e os rumos da igreja em suas 95 teses, em 31 de outubro de 1517. E ele próprio foi atropelado pela história ao ver outras igrejas surgirem fora da influência do catolicismo romano e fora da sua própria influência direta. Protestante, como o próprio nome diz, é aquele que protesta contra Roma. Mas não é a esse nível superficial de memória do cisma de cinco séculos atrás que fica o anticatolicismo dos evangélicos no Brasil.
Na verdade, a própria identidade evangélica brasileira também se forma no anticatolicismo por motivos bem diferentes daqueles que fundam o protestantismo europeu. Quando o protestantismo chega no Brasil, o país era um Império e o catolicismo era religião oficial. Isso significava, entre outras coisas, que protestantes e judeus não tinham onde ser enterrados (até hoje, quem passa pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco pode encontrar lá um túmulo do professor Julius Frank, que foi feito no pátio da faculdade porque, sendo alemão e criado protestante, não poderia ser enterrado em cemitérios católicos ou em igrejas. Só lhe restaria o cemitério dos escravos, o que foi alvo de protesto dos alunos), nem podiam praticar livremente sua religião. Havia tolerância com cultos anglicanos, por causa de um Tratado de Amizade e havia igrejas anglicanas no país desde 1819, mas apenas em inglês, sem a possibilidade de exercício público da fé e conversão de brasileiros. O primeiro trabalho anglicano para conversão de brasileiros só começou em 1890. Os luteranos também, no início, se limitavam às colônias alemãs. Mas, antes do fim do Império, já haviam chegado no Brasil presbiterianos e congregacionais.
O conceito de evangélicos, como o conhecemos no Brasil, só é possível por causa de uma unidade circunstancial que se dá nesse contexto de fortíssimo catolicismo patrocinado pelo Estado (toda a base para essa argumentação é tirada, em suma, do livro O Celeste Porvir, de Antonio Gouvêa Mendonça, publicado pela Edusp. Recomendo demais para todos os evangélicos e para qualquer um que queira se especializar no assunto). Apesar das grandes diferenças de ritos e de interpretações da Bíblia entre igrejas protestantes no mundo inteiro, no Brasil elas tomam ares de uma só nova religião. Os próprios protestantes, entendendo ser essa denominação protestante carregada com forte preconceito, passaram a se chamar evangélicos, unificando uma fé que em outros continentes eram várias identidades diferentes. A primeira publicação protestante no Brasil se chamava Imprensa Evangelica e foi publicada entre 1864 e 1892, quinzenalmente, editada pelo pastor presbiteriano Ashbel Green Simonton, mas reunindo missionários de outras denominações. Um dos principais pontos comuns entre os novos evangélicos, estava o entendimento majoritário de que o catolicismo não era uma religião cristã genuína, mas uma “religião pagã com forte dependência da mitologia”, nas palavras do próprio Simonton em sermão de 1869 (apud Mendonça, p. 126).
Essa marca do século XIX resiste ao longo de todo o século XX. Mesmo as novas igrejas, em geral cismas das protestantes históricas ou das pentecostais mais antigas, contam com benevolência das demais igrejas evangélicas, enquanto a Igreja Católica continuava sendo identificada por evangélicos como pagã, idólatra, não genuína, efetivamente diabólica, demoníaca.
Abre parênteses
(Meu avô materno foi criado no catolicismo e se converteu à igreja presbiteriana quando meu tio mais velho e minha mãe já eram nascidos. Por causa dessa conversão tardia, o anticatolicismo nele era especialmente marcante. O processo de conversão dele trazia vários bons motivos para isso. Primeiro, contava ter se convertido lendo a Bíblia e considerando que várias coisas ali não eram seguidas pela igreja. Diz ter ficado meses na igreja brigando com o padre, até entender que tinha que ir para uma igreja evangélica. Bebia e jogava cartas. Ao se converter, largou os dois vícios.
(Ele contava muito feliz quando uma vez encontrou um padre em uma oficina e esse padre o convidou para falar na sua paróquia sobre dízimo, porque os fiéis católicos não andavam tão fiéis quanto os crentes nas ofertas. Meu avô foi, falou sobre dízimo e ao final da pregação, falou da necessidade de aceitar Jesus como único Senhor e Salvador. O padre contava que dezenas de pessoas se levantaram e foram à frente atendendo ao apelo de aceitar Jesus de coração, genuinamente. O próprio padre se levantou e disse que também queria aceitar Jesus. Assim como o primeiro pastor protestante brasileiro, o ex-padre José Manoel da Conceição, esse padre também se tornou pastor.
(Esse mesmo avô, o seu Arcênio, ex-católico cuja pregação fez um padre se converter, carregava nas tintas do anticatolicismo. Ele costumava falar de Jesus para qualquer um, inclusive para pessoas já crentes, o que certamente incomodava muita gente. Uma vez, na minha casa, ele viu um amigo meu que era católico, um dos meus melhores amigos, e me perguntou se podia pregar o evangelho, falar de Jesus, para ele. Assenti, porque sabia que era muito importante para o seu Arcênio. Começava perguntando: você acredita em Deus? O que todo mundo costumava responder com um sonoro “sim”. Depois perguntava se a pessoa tinha certeza da salvação. Quase sem exceção, as pessoas tergiversavam. Católicos, em especial, não costumam ter certeza da salvação, afinal, pois sabe-se lá que pecados cometerão e que boas obras e penitências serão suficientes para purgar esses pecados. E aí meu avô começava a percorrer vários textos bíblicos para mostrar que quem crê em Deus de verdade tem certeza de sua salvação e, se você não tem, talvez devesse passar por uma conversão verdadeira. Já vi alguns se converterem assim, não faço ideia de quantos estavam sendo genuínos. Pois bem: meu amigo, católico, respondeu que tinha certeza da salvação — do que ele não tinha se convencido na catequese, acho, mas por conviver muito comigo. Então mesmo com a certeza, meu avô passou a discorrer sobre por que se deve ter certeza da salvação e no que a doutrina católica estava errada. Deixei correr. Até que ele começou a demonstrar como o papa era ele próprio o anticristo, e a como a Igreja Católica era a besta, inclusive mostrando que letras de palavras em latim quando somadas davam o 666, número identificado com a besta no Apocalipse. Eu tinha 15 ou 16 anos, mas interrompi meu avô. Aí não, não aceitaria ele fazendo numerologia para ofender a fé do meu amigo.)
Alguns dos leitores mais velhos que eu se lembrarão, aliás, que em 12 de outubro de 1995 o pastor Sérgio Von Helder, da Universal, chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida na programação religiosa da madrugada na TV. Aquilo chamou a atenção para o exagero e a iconoclastia da Universal (irônico que a igreja que tinha pastor chutando santa ao vivo na TV tenha sido a que erigiu um templo de Salomão com réplica da arca da Aliança e tudo mais). Obviamente, boa parte dos evangélicos não endossou o ato do pastor, até porque aquilo era antes de mais nada propaganda negativa. Mas a mentalidade geral sempre foi de que a veneração de imagens pelos católicos era, sim, idolatria e que, fora o contexto de vilipêndio a objeto de culto, não haveria nenhum mal intrínseco em chutar uma imagem de Nossa Senhora.
Mas esse contexto de anticatolicismo começa a mudar fortemente nos últimos 20 anos. Em algum momento, quando os evangélicos passam a ocupar espaços de representação política, os católicos, tidos até então como alvo de conversão, como inimigos da verdadeira fé, passam a ser vistos como aliados circunstanciais na defesa de valores cristãos. Esse movimento se dá de forma muito mais intensa na direita mais reacionária. Essa aliança circunstancial já existia desde a Constituinte, quando a bancada evangélica e católicos se alinharam para alguns temas que dizem respeito a moral e religião. Mas se torna mesmo cada vez mais frequente à medida em que tanto católicos quanto protestantes mais conservadores passam a entender que têm um inimigo maior comum. O secularismo passa de pauta cara aos protestantes (quando os protestantes eram minorias sem representação e precisando do Estado apenas para lhes garantir direito de culto) a uma espécie de fruto da influência do ateísmo e do materialismo (tenho a impressão de que crentes confundem o conceito filosófico e a ideia corrente de apego a bens materiais).
Além disso, evangélicos, que já tinham um viés anticomunista na época da Guerra Fria, até pela influência cultural do evangelicalismo americano, de fortes tintas macartistas, também passam a entender os católicos mais tradicionais como aliados nessa luta contra o comunismo — na hagiografia da extrema direita brasileira será possível ver algumas discussões entre católicos tradicionalistas e Júlio Severo, um blogueiro de pautas conservadores, anticomunistas, antipetistas e anti-LGBTs, que era da igreja batista. Olavo de Carvalho não guardou poucos xingamentos para Severo nos seus últimos anos de vida.
E ainda, e acho que esse é o detalhe de maior união, por causa de uma influência grande de uma visão do fim dos tempos (chama-se a isso escatologia, estudo das últimas coisas) pré-milenista (ou seja, e bem grosso modo: creem que o mundo vai piorar muito antes que Jesus volte para nos levar de novo para o reino de Deus), também como consequência da importação da teologia americana e dessa identidade religiosa una dos evangélicos, os evangélicos brasileiros têm uma visão de que o mundo moderno caminha inevitavelmente para uma grande perdição. Essa grande perdição se prova em especial nos nossos tempos com a percepção de que os padrões morais estão mais elásticos, e aí tem grande relevância em especial um deslocamento da moral sexual. Para evangélicos brasileiros, a aceitação de LGBTs é uma imposição cultural que lhes limita a liberdade religiosa. Eles temem que gays proibam pastores de dizer que alguma prática sexual é pecado. E acreditam que há um grande esforço de progressistas para limitar a liberdade religiosa e a liberdade de expressão daqueles que não seguem essa agenda.
De certa forma, também um pouco por importação americana, veem isso como faceta de uma agenda que também é pró-imigrantes (e ironicamente também está ligada ao temor anti-islâmico), progressista (ou esquerdista e, por transitividade, comunista), pró-Estado, antivida (por ser pró-legalização do aborto), universalista e pós-moderna. Identificado esse inimigo, católicos passam a ser vistos como aliados, especialmente porque seus valores tradicionais estão igualmente ameaçados por esses avanços da agenda da esquerda. Num momento em que as forças que supostamente dominam o mainstream (mídia, universidades, partidos políticos) são igualmente ameaçadoras contra católicos e contra evangélicos, não faz mais sentido que evangélicos vejam católicos como inimigos.
E é nesse contexto que se apaga a fronteira da identidade entre católicos e evangélicos, unidos contra uma ameaça comum, um mal maior. É também nesse contexto que Bolsonaro, um homem que fala muitos palavrões, em terceiro casamento (portanto, um adúltero, na visão de evangélicos tradicionais), que jamais se disse evangélico, mas que se batiza no Jordão e toma hóstia, portanto eminentemente pancristão, híbrido, cameleão religioso, pode se cacifar para se tornar um homem de Deus, ao se colocar contra essa agenda (com grande ênfase para aquela que combate a mudança da moral sexual) – enquanto, por exemplo, Marina Silva, que é identificada com essa agenda esquerdista, é tida como falsa crente.
A identidade católica e a identidade evangélica de que fala o arcebispo de Aparecida não têm mais a mesma relevância que tinha há 20 anos. Porque hoje conservadores entendem que a pauta antiaborto e anticomunismo é o que identifica um verdadeiro cristão. Aliás, reparem, a partir de hoje, o quanto hoje cada vez mais pessoas se identificam publicamente como “cristão, conservador”, com esse híbrido que não atesta nem sequer em que igreja a pessoa comunga, se é que comunga em alguma (sendo mais provável que, sendo político, comungue em qualquer uma). Bolsonaro, ao menos, não comungou na Basílica de Aparecida hoje.