Mais distante que nunca dos evangélicos num país mais culturalmente evangélico que nunca
Anna Virginia Baloussier mostra como Lula, caso vença, assume mais distante do que nunca de uma população evangélica num país que se tornou muito mais culturalmente evangélico nos últimos 30 anos.
Quando eu comecei este substack, eu sabia que teria material para alguns posts por semana durante a campanha, e que em algumas semanas, por causa do trabalho, nem daria para escrever. Mas fui completamente atropelado por uma campanha ainda muito mais cheio de eventos e situações relacionadas a igrejas evangélicas do que jamais imaginei. A campanha de 2010 teve uma pauta de aborto e alinhamento de igrejas evangélicas, mais uma pauta LGBT bem fortes, que se reforçou com a ascensão de Marina Silva. Em 2014, a desconstrução de Marina Silva tornou pautas relacionas a igrejas evangélicas ainda mais relevantes. E o apoio massivo de Bolsonaro nas igrejas evangélicas em 2018 tornou tudo ainda mais forte. Mas o que se vê em 2022 é sem precedentes.
Tinha passado batida por mim uma reportagem de muito fôlego da Anna Virginia Baloussier na Ilustríssima, no sábado (1º), véspera do primeiro turno, que menciona a relação de Lula com a religião (ele é católico, embora isso seja posto em xeque por campanhas de desinformação de adversários) e especialmente com as lideranças evangélicas. Anna Virginia acertadamente cravou que Lula poderia chegar de novo ao poder mais afastado dos evangélicos. No Twitter, ela disse que o título parecia datado. Não está.
Gostaria de destacar na matéria uma entrevista interessantíssima com Paul Freston, uma mente absolutamente notável, uma das pessoas que sempre que eu li ou ouvi falar tinha alguma coisa a dizer (tive sorte de morar com o Raphael, filho do Paul, também formado em ciências sociais por um bom tempo há uns anos). O doutorado do Paul Freston, defendido em 1993 na Unicamp, é um trabalho inescapável par entender a bancada evangélica (e junto ajuda a entender a formação de bancadas de interesse conservador e do centrão na Constituinte) — procurem por ele: FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Campinas. Tese de Doutorado em Sociologia, IFCH - Unicamp, 1993.
Paul Freston diz: “Toda vez que a esquerda mina alguém como Marina, cria um vazio que vai ser ocupado por uma Damares Alves”. Vale lembrar que Damares Alves voltou agora ao Senado, pelo voto do DF, onde fez carreira exatamente como assessora da bancada evangélica. Ela passou por gabinetes do pastor da Quadrangular Josué Bengtson (PTB-PA), do pastor presbiteriano Henrique Afonso (PT-AC), do dono de gravadora gospel Arolde Olivera (PFL, DEM, PSD-RJ), do cantor gospel Magno Malta (PL-ES) e do pastor e delegado assembleiano João Campos de Araújo (PSDB, Republicanos-GO). Todos eles lideraram a Frente Parlamentar Evangélica, da qual Damares era uma articuladora e posto no qual ela se tornou amiga da assessora do PP Michelle de Paula Firmo Reinaldo, depois conhecida como Michelle Bolsonaro. Eleita senadora, Damares garante mais 8 anos nos corredores que conhece há 23 anos.
Paul Freston também nota que Bolsonaro se tornou “um candidato híbrido ideal, talvez o primeiro presidente pancristão, reunindo as vantagens eleitorais da identidade evangélica, mas evitando as desvantagens”. A ideia de presidente pancristão é interessantíssima. Ao não se identificar como evangélico, mas conhecendo e incorporando a agenda de costumes e tratando com naturalidade os evangélicos, Bolsonaro consegue circular entre eles sem dificuldade e se constituir legítimo representante dos valores evangélicos. Ao mesmo tempo, o padrão moral exigido dele não é o exigido para um evangélico, de modo que ele pode continuar defendendo armas (por uma importação da direita americana, essa pauta também começa a ser defendida nas igrejas brasileiras), pode estar em terceiro casamento, pode falar palavrões, ser “boca suja”, e não se exige dele que não seja agressivo.
A reportagem também traz boas sacadas de Nilza Valéria Zacarias, que resssalta o quanto o espírito do tempo e os usos e costumes da população mais pobre incorporaram a cultura evangélica. Eu me lembro quando esse processo começou, nos anos 90, quando a cantora Aline Barros apareceu em programas da Xuxa, e o grupo de rock Catedral também passou a ter visibilidade. Nessa época, havia ainda uma resistência da igreja evangélica com essas inserções no meio secular, no “mundo”, ou seja, com crentes tendo espaço em programação não religiosa, quando havia ainda uma expectativa de que artistas cristãos e pastores tivessem uma vida inteiramente dedicada à igreja.
Isso mudou muito rápido. Em 2009, a música de Regis Danese Faz Um Milagre em Mim (Como Zaqueu) já era hit absoluto na 25 de Março, em São Paulo. Em 2014, depois de muitos anos sendo um movimento completamente minoritário nos times de futebol, os Atletas de Cristo tinha se tornado maioria absoluta na Seleção Brasileira, e as rodas de pagode de 2002 e a festa generalizada de 2006 tinham sido substituídas por rodas de oração e cultos na concentração, com muito estranhamento da imprensa esportiva. Em 2010, quando uma colega minha entrevistou a ex-dançarina e ex-atriz pornô Regininha Poltergeist e ela disse que estava sem sexo porque esperava um “varão de Deus”, meu chefe não se aguentou de gargalhar na redação. Hoje termos como “varão”, “misericórdia”, “paz do Senhor”, estão completamente naturalizados nas conversas e são muito usadas por exemplo pelo público LGBT. Duas das drag queens de maior sucesso da música brasileira, Pabllo Vittar e Gloria Groove, começaram a cantar na igreja e têm vocabulário evangélico e influência do gospel em suas músicas. Cantores de funk do porte de MC Naldo e Tati Quebra Barraco fizeram incursões na música gospel. Jogadores comemoram gols com faixa de 100% Jesus e apontando para o céu, mas sem fazer sinal da cruz. E possivelmente o maior influenciador digital brasileiro de 2022, Luva de Pedreiro, faz sucesso gritando “Receba!” e “Obrigado, meu Deus”, exportando bordões das igrejas para o mundo.
Outro destaque que gostaria de fazer ao texto da Anna Virginia é a menção a Benedita da Silva, deputada federal reeleita e ex-ministra que é o maior nome do PT do Rio e a maior referência evangélica dentro do PT [que já teve também Marina Silva, o acriano Henrique Afonso, o baiano Walter Pinheiro e ainda tem a piauiense Rejane Dias. O PSOL, antes do recém eleito pastor Henrique Vieira, já tinha nos seus quadros Chico Alencar, que volta à Câmara em 2023 e é anglicano, e deu o primeiro mandato ao Cabo Daciolo, hoje no PDT, que também já teve o casal Anthony e Rosinha Garotinho, assim como o PSB]. Benedita tem uma percepção bem acima da média, para a esquerda, das preocupações de pessoas pobres e mais conservadoras em costumes, e nunca deixou de disputar o eleitorado menos progressista para causas de esquerda e de defesas de minorias.
Em geral, a reportagem reforça a impressão de que não adianta buscar acenar para evangélicos apenas com lideranças muito progressistas de igrejas muito excepcionais e nas quais os próprios evangélicos não se sentem representados. Henrique Vieira ou pastores como Ariovaldo Ramos, Ed René Kivitz, Ricardo Gondim ou Caio Fábio, que têm muita vez na mídia por serem vozes progressistas dentro da igreja, quanto mais falam a língua da esquerda, menos soam representantes legítimos dos evangélicos. A aproximação de qualquer jeito, apressada, sem dominar os códigos, como Bolsonaro (e especialmente Michelle) domina, ainda mais perto da eleição, não terá poder de mudar votos e ainda pode soar ridícula ou acabar comprometendo pautas caras para a esquerda na expectativa de colher ativos colaterais que podem nunca vir.