O tsnunami que carregou Valnice Milhomens para longe de Marina
Há umas semanas, eu tinha levantado uma hipótese para como as candidaturas de Marina Silva à presidência e, especialmente, o tratamento dado pela grande mídia e pela esquerda a ela acabaram gerando um forte ressentimento entre evangélicos. Hoje, depois do primeiro turno que mostrou, mais uma vez, um bolsonarismo resiliente nas urnas, uma reportagem da Anna Virgínia Baloussier na Folha me fez retomar essa hipótese.
Abre parênteses
(A Anna Virgínia faz uma das melhores coberturas de evangélicos no Brasil, e falo isso sem nenhum compromisso com ela, porque nem nos conhecemos. Ela acerta o tom na cobertura basicamente porque cobre evangélicos há bastante tempo, o que faz ela entender nuances e conhecer estruturas e esferas de influência como em geral jornalistas não conseguem fazer. Sugiro lerem tudo que ela escrever sobre o tema, se tiverem interesse em entender mais do assunto. Ao contrário deste blog aqui, ninguém pode acusar o dela de ter uma visão de dentro. A visão é completamente de fora, zero afetada por maneirismos dos próprios evangélicos e, ainda assim, sem grandes preconceitos ou condescendência.)
A matéria da Anna Virginia traz vários relatos de como foi o domingo de eleição nas igrejas, em meio a bandeiras do Brasil e constrangimento de fieis por usarem vermelho sem se lembrarem que era a cor do PT. Ela passeia por alguns pontos que merecem posts individuais e que são quase uma etnografia dos evangélicos no Brasil: três canais de mídia (os sites Pleno News, Fuxico Gospel e a Folha Universal), quatro lideranças religiosas (bispa Sônia Hernandes, apóstola Valnice Milhomens, Silas Malafaia e bispo Edir Macedo), um artista gospel (o cantor Fernandinho), duas subcelebridades (Karina Bacchi, Andressa Urach; ok, Andressa não merece post e prometo não fazer, mas da Karina Bacchi vou tentar fazer em breve, porque ela recentemente foi co-host de podcast evangélico transformado em 4 horas de campanha eleitoral), uma doutrina (a escatologia, que trata do fim dos tempos) e pelo menos dois fenômenos (a influência dos americanos sobre a igreja evangélica brasileira e a relação dos evangélicos com o catolicismo e como ela tem se alterado nos últimos tempos por causa da política). Já falei do Silas Malafaia uma vez, mas volto nele para comentar o papel dele como capelão de avião presidencial com destino a velório de chefe de estado. Também devo voltar um dia na história de Edir Macedo e seus posicionamentos nos governos petistas (e sobre aborto). E ainda teremos tempo certamente para falar da criadora da Marcha para Jesus bispa Sônia. Mas hoje, vamos conhecer a apóstola Valnice Milhomens.
Nascida no interior do Maranhão há 75 anos, Valnice se converteu aos 15 anos, foi missionária em Moçambique, Angola e África do Sul. No Brasil, já pregava na TV desde 1989 e foi ordenada pastora em 1993. Em 1999, ela foi uma das principais responsáveis por trazer ao Brasil o movimento G12, um modelo de evangelização e organização de igrejas que consiste em criar, dentro da igreja, grupos de 12 pessoas que são comandadas por um líder e ensinadas por ele. O grupo é incentivado a crescer, e toda vez que ele chega a 24 pessoas, ele se “multiplica”, formando dois grupos. É uma estratégia de crescimento das igrejas que foi criada pelo pastor colombiano Cesar Castellano e da qual Valnice foi pioneira no Brasil. O G12 causou várias polêmicas entre as igrejas tradicionais, porque a adesão ao método gerava incômodo em comunidades mais tradicionais e também pelas mudanças teológicas que a estratégia incentivava.
A menção a Valnice Milhomens entre os apoiadores de Bolsonaro é que me fez retomar a hipótese do ressentimento dos evangélicos. Em 2010, uma nota de Lauro Jardim no Radar, da Veja, dizia que ela, Ariovaldo Ramos, Jabes Alencar (Assembleia de Deus do Bom Retiro) e Renê Terra Nova (Ministério Internacional de Restauração, com sede em Manaus) apoiavam a candidatura de Marina Silva (PV) para presidente. Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo, na Penha, Rio) já tinha feito uma inflexão para apoiar José Serra (PSDB). Manoel Ferreira, bispo-primaz da Assembleia de Deus Madureira (a segunda maior convenção de Assembleias do Brasil), Edir Macedo, da Universal, e o missionário RR Soares, da Internacional da Graça, estavam com Dilma Rousseff (PT).
Em 2014, Valnice continuava com Marina. Uma matéria da Folha assinada por Natuza Nery, Ranier Bragon e Andréia Sadi (e carregada de falta de entendimento sobre evangélicos) revelava que as duas eram amigas de oração há uma década. Uma foto publicada no Estadão mostrava Valnice com os braços erguidos aos céus intercedendo a Deus por Marina, ao lado do pastor batista Ed René Kivitz. Mais que isso, desde 2010, Valnice profetizava (teria recebido mensagem Deus prevendo o futuro) que Marina seria presidente. A própria Valnice teria divulgado um texto dizendo que isso seria possível ainda naquele ano, mas era preciso oração e jejum (Guia-me, o texto foi atualizado em 2014, mas parece ser de 2010). Outro lugar onde essa profecia sobre Marina teria aparecido em 2010 foi na Conferência Dunamis (do Teo Hayashi, um dos que está no podcast com a Karina Bacchi entrevistando Bolsonaro).
Valnice Milhomens era amiga de Marina, insistiu no apoio a ela quando boa parte dos evangélicos estava com outros candidatos, e hoje é 100% Bolsonaro. Jabes Alencar, como mostramos em outro post, amigo de Malafaia, estava com Marina em 2010 e hoje é Bolsonaro, participando ao lado dele da Marcha para Jesus. Téo Hayashi é Bolsonaro. Ed Renê e Ariovaldo ainda estão mais próximos de candidaturas e movimentos progressistas. Aqueles que estavam com PT todos viraram Bolsonaro.
É um bom sinal de como os evangélicos de fato não eram assim tão reacionários, mas em algum momento um gatilho os despertou para fazerem parte de uma reação conservadora. A mensagem de Valnice também mudou. Em 2014, era:
“O Brasil vai melhorar com Marina. A Bíblia diz que quando o justo governa, o povo se alegra. O justo não significa o religioso, mas o honesto. Essas características de humanidade, de temor e amor a Deus ela tem.”
A ênfase era em Marina ser justa, não por ser religiosa, mas por ser honesta. A expectativa era de que, por isso, ela governaria para todo o povo, por ter no seu caráter a humanidade, o temor e amor a Deus. Em 2022, depois de falhar a profecia de Marina presidente, o discurso de Valnice foi ajustado para: "O Brasil cumprirá seu destino profético e será de fato uma nação cristã". A expectativa é mais exclusivista, de um predomínio dos cristãos sobre os demais. De certa forma, parte dos cristãos abandona a expectativa de que evangélicos sejam tratados como iguais, com alguma boa vontade, pela mídia e pela esquerda, e passa a comprar o discurso de Bolsonaro.
Depois de três derrotas em eleições presidenciais, Marina foi aclamada pela imprensa e pela esquerda como deputada federal eleita por São Paulo. Mas não são mais tantos evangélicos que veem nela alguma esperança (de serem vistos como agentes políticos dignos de respeito), dispostos a deixar de lado seus interesses individuais ou de grupo para buscar um interesse coletivo mais geral do país. Ao entenderem que sua visão conservadora de mundo não é admissível, nem suas ideias de que Deus criou o mundo ou de que é bom buscar em oração a vontade de Deus, evangélicos passaram a entender que precisam afirmar seu poder para se proteger, para proteger sua liberdade de culto e de crença. Quem lhes deu isso não foi Marina. Alguns evangélicos, como Ed René Kivitz, ainda dão cartaz para Marina (sugiro ouvirem este episódio do podcast do Ed René com ela). Mas o espírito dos evangélicos, como mostram Téo Hayashi, Valnice Milhomens e Jabes Alencar, se divorciou dela faz tempo e está casado com outro.
Não é sem razão que a percepção geral é de que evangélicos decidiram mais uma vez a eleição para evitar uma vitória de Lula no primeiro turno. Isso obviamente não justifica agressões a evangélicos, mas também serve para afastar as teses de quem acha que tem o caminho das pedras para virar o voto evangélico. Não é um bolinho vira-voto na Paulista ou uma candidatura de deputado pelo PSOL no Rio que mudam o espírito de uma comunidade tão grande e tão diversa em quatro semanas.