Hipóteses para o ressentimento dos evangélicos no espaço público
Relato pessoal sobre como foi se tornar adulto sendo evangélico em círculos progressistas durante os governos do PT e impressões de como isso levou a Bolsonaro
O texto da newsletter de hoje não é novo, e é mais pessoal, menos informativo, mais opinativo. Se não tiver interesse na minha opinião sobre fenômenos complexos, sugiro que pule. Ele foi escrito para um grupo de conhecidos em setembro de 2020 – em especial como uma resposta ao Idelber Avelar, professor de literatura da Tulane, em Nova Orléans, EUA.
Eu nasci num lar evangélico, cresci evangélico e me tornei evangélico (evangélico brasileiro é quase sempre um processo de conversão mesmo quando a pessoa nasce evangélica). Estudei em colégio presbiteriano, sempre frequentei a igreja. Apesar de ser minoria, era numa cidade com uma proporção enorme de igrejas, onde ser evangélico não é nem perto de vergonha. Ali, pra mim, sempre ficou clara a diversidade, a quantidade de diferentes estilos de culto, teologia, ênfase, regras de comportamento, visões políticas. Essa diferença enorme era perceptível e usada inclusive para afastar desvios de conduta (a Universal é considerada de certa forma um desses desvios há uns 25-30 anos). Mas também havia sempre aquele sentimento de que quem não é contra nós é por nós.
Quando eu chego na USP, com 18 anos, eu vou ao mesmo tempo para uma igreja completamente fora da curva, de professores da USP, gente com pós na USP, alunos de mestrado e doutorado, uma igreja com uma liberdade de pensamento ainda maior do que aquela com a qual eu já estava acostumado -- porque essa liberdade já existia para contrapor linhas entre evangélicos, mas nela era até liberdade de questionar as próprias bases da fé. Ao mesmo tempo, fui para a universidade aprender teoria da comunicação, ciência da linguagem, básico de filosofia. Na faculdade, eu percebi cedo que não tinha a cultura dos meus amigos, eu era o moleque mais pobre da turma, acho, e vim de um lugar onde não tinha museu e show que não fosse gospel, axé, sertanejo. E aí de repente eu não só tenho que ler Saussure, como também ouvir dos colegas "como você não conhece essa banda indie?" E no meu primeiro ano, ouvi de uma amiga que ela não acreditava que uma pessoa que acredita em Deus possa fazer ciência com isenção. Pra mim foi um choque, eu que buscava formas de me identificar com intelectuais sem que isso precisasse entrar em conflito com minha fé – eu lembro de sorrir ao ouvir que Kant era protestante ou de ler um personagem calvinista em um livro do Milan Kundera que tinha que ler pra prova de teoria da comunicação. Por ser o crente da sala (como tinha verniz de intelectualidade e tolerância, na verdade era o protestante), eu era questionado por toda opinião minha mal formulada, embora nunca isso fosse exatamente uma cassação da minha fala. Entrei num grupo de estudos sobre comunicação e religião com uma orientadora ateia e uma editora brilhante, e toda vez que eu dizia, como aluno de graduação atrevido, alguma opinião por algo que eu achava saber ou acreditar, ela me dizia: mas você está deixando o protestante falar, você precisa se despir dos a prioris. Estudei mais que todos os meus colegas, porque pra cada afirmação minha, ganhava um dever de casa para comprovar que o que eu dizia tinha base em algum autor, e não era o protestante falando mais alto. Eu sou completamente agradecido a essa professora, costumava dizer brincando pra ela, para ser lisonjeiro, porque ela amava, que ela foi minha própria Hume, já que me libertou do meu sono dogmático. Naturalmente eu também era de esquerda, embora já me considerasse liberal, meus amigos eram de esquerda. E eu evidentemente achava que as lutas às vezes me pareciam meio distantes, mas tentava aprender com elas. Cheguei na faculdade sem nunca ter visto um beijo gay na vida e de repente precisava mostrar naturalidade em ver beijos triplos ou quádruplos e pessoas andando peladas no departamento (era a faculdade de comunicação e artes). Com todo o estranhamento, eu sentia e amava esse ar de liberdade intensa, inclusive porque eu precisava me questionar o tempo inteiro, mas também estava entendendo que havia ali algum espaço para sofisticar minhas ideias e minha vivência e guardar minha fé e minhas origens.
Enquanto eu estava ali precisando me validar, me legitimar a cada dia (aconteceu a mesma coisa depois em redações), havia três coisas acontecendo de forma muito seminal:
1-nos ambientes acadêmicos, um preconceito com crente que tinha uma origem um pouco classista -- de certo modo eu precisava me afastar do rótulo, me colocar no pedestal do protestante ilustrado, do crente que vai com os amigos para jogos universitários e bares, ainda que não pusesse uma gota de álcool na boca ou pulasse os palavrões nas músicas das torcidas. Era um jeito de dizer: nem todos os evangélicos são iguais, mas você também tem que entender que essas pessoas simples são simples em um contexto de limitações e às vezes aquilo ali, a fé, tem um efeito de fato transformador na vida delas de dar bastante dignidade.
2- também nos ambientes acadêmicos, aquela sensação de que estamos fazendo história e de que precisamos forçá-la sempre. De que todos os avanços ainda são insuficientes e que não aceitaremos nada menos que tudo. Então tinha essa necessidade de puxar sempre a corda em direção ao novo. Quem hesitava, era retrógrado, fascista, preconceituoso.
3- nos ambientes evangélicos, um entendimento de que esses ambientes acadêmicos e a mídia eram um tanto quanto hostis à fé. Que alguns temas de costume eram muito relevantes para a esquerda e que qualquer ideia conservadora (e a fé é de certa forma conservadora) deveria ficar para trás.
Eu tentava me equilibrar entre esses dois mundos, de tentar mostrar que nem todos os evangélicos são iguais e de me irritar quando algum pastor franzia o olho e me dizia que eu devia tomar cuidado para não me deixar levar pela esquerda da USP.
Aí chega 2010 e acontecem três coisas na eleição: primeiro, um pastor batista de Curitiba começa a falar de política e criticar o PT. Viraliza, ninguém percebe. E volta uma antiga campanha de difamação contra Temer, que supostamente seria satanista (a história vinha dos anos 90). Os evangélicos passam a desconfiar da chapa, o que se reforça pela escolha do pt de simplesmente abandonar a tentativa de rebater as acusações sobre corrupção. Segundo, Marina – uma evangélica concorrendo à presidência (a segunda, Garotinho tinha concorrido em 2002). Ali, Marina ganha uma votação substancial sem que percebam nela uma ameaça e ela não é alvo de campanha difamatória. Terceiro, uma discussão sobre aborto, que é inflada porque a Dilma resolve mudar a sua posição para tentar debelar a desconfiança de setores evangélicos. Dilma, que era a favor da legalização, passa a ser contra. O tema vai para a capa da Veja (eu era estagiário lá, colaborei com a reportagem de capa e entrevistei o Silas Malafaia pra falar sobre a importância disso pros evangélicos).
Em 2014, quando a Marina volta a ser opção, mas agora já como ameaça, a Folha resgata o tema do aborto, que ficou adormecido por quatro anos, e os temas caros aos evangélicos. A Folha dá espaço a artigo de gente do conselho editorial questionando Marina por ser criacionista (tem uma confusão evidente de termos indeterminados, para Marina, que é evangélica, se dizer criacionista é dizer basicamente que acredita num Deus criador do mundo, um negócio que qualquer católico entende. Para o Rogério Cerqueira Leite, era parar de ensinar evolução nas aulas de biologia). E aí, para alegria do PT, voltam a questionar sobre aborto a Marina, não a Dilma, que era insuspeita de ser evangélica, ainda que firmasse posição contra pra acenar pro voto evangélico, mas a Marina, que podia perder voto evangélico e atestar contra a própria fé se tivesse uma posição firme a favor, mas que vinha de uma tradição de esquerda que achava que essa discussão era um direito das mulheres. Acontece a mesma coisa com LGBTs, e Marina é acusada de não defender direitos de LGBTs (tinha o melhor programa sobre o tema) ao mesmo tempo em que era acusada pelo Silas Malafaia de não representar os valores cristãos.
Aí rolam duas coisas ao mesmo tempo: uma campanha de fundamentalistas evangélicos nas igrejas contra a hesitação de evangélicos ao defender sua fé; uma campanha da esquerda contra a mera possibilidade de evangélicos hesitarem em debater no espaço público algo que seria caro para a fé deles no espaço privado.
E aí passamos a Bolsonaro: o dia em quem eu percebi que o Bolsonaro ia ganhar a eleição e que os evangélicos iriam votar em peso nele foi quando um amigo meu, um dos mais doces e moderados amigos da adolescência, evangélico, que tinha não só votado na Marina em 2014 como ficado triste porque eu estava desanimado na possibilidade de vitória dela, esse amigo declarou voto no Bolsonaro (e tivemos um princípio de discussão).
O que é o fenômeno Bolsonaro entre evangélicos? Assim como em outros setores, mas potencializado, ele é o produto do ressentimento de anos. A campanha contra Marina, inconscientemente para a maioria, deixou claro para boa parte dos evangélicos que não importava o quanto eles se moderassem, se legitimassem, votassem com a esquerda, integrassem o centro acadêmico, cortassem os cabelos e passassem a não usar mais saia, eles não seriam mais do que apoiadores vistos com desconfiança, e a mais moderada das evangélicas seria considerada sempre uma mulher das cavernas porque lê a bíblia antes de tomar decisões importantes (o que evangélicos sempre tomaram como sinal de virtude). Ao mesmo tempo, alguns desses filhos de Satanás que usam o púlpito e o nome de Deus para obter poder político, percebendo a irritação de boa parte da sociedade com o PT e com sua defesa sistemática da corrupção, com essa caça de aliados por falta de purismo, e percebendo que o papel deles no poder, com esse grupo do qual foram anteriormente sócios, jamais passaria de coadjuvante apoiador que vemos com desconfiança para um papel de integrante orgânico, eles resolvem pular do barco e atacar ferrenhamente os antigos aliados. Isso fica evidente com gente como Magno Malta, Edir Macedo e o aparato da Universal/Republicanos.
Os evangélicos pulam no colo de Bolsonaro como produto de um ressentimento de quem sempre foi tratado como inferior pela intelligentsia -- e jamais deixaria de ser considerado outsider, token ou figura exótica, mesmo quando fosse apoiador. Os pastores mais reacionários, que já eram tratados com algum respeito pela igreja porque tem mesmo um temor de autoridade que fala em nome de Deus, mas que não representavam a igreja como um todo, de repente passam a ter uma voz que é ouvida.
A qual texto do Idelber vc está respondendo?