Michelle contra as religiões de matriz africana
Como o pentecostalismo valida a umbanda e o candomblé e o poder de suas entidades para depois demonizá-los
Ao contrário do que fiz no primeiro post, este segundo não tem grandes personagens ou grandes palcos, mas terá a tarefa pretensiosa e frustrante de explicar uma ideia coletiva. Na verdade, o fato que vou comentar ajuda a entender a relação de crentes com duas grande abstrações: 1- a umbanda e o candomblé (falo das duas juntas, porque os evangélicos não fazem a distinção entre elas tão claramente; as religiões em si, os sistemas de crenças que derivam delas e a forma como essas ideias impactam o mundo), 2- o conceito de liberdade religiosa. Mas vou me ater primeiro às religiões de matriz africana.
Ontem a imprensa noticiou um story de Michelle Bolsonaro com o comentário “Isso pode, né! Eu falar de Deus, não!”1. Na verdade era um comentário da primeira-dama a este post aqui da vereadora paulistana Sonaira Fernandes (Republicanos). O vídeo traz Lula passando por um banho de pipoca e em seguida uma edição dele cumprimentando representantes de religiões de matriz africana. A edição tosca claramente tenta forçar sentidos inexistentes nas falas de Lula: que ele cumprimenta as entidades (dando uma impressão de que ele se dirige às entidades espirituais e não às entidades da sociedade civil), que ele vai tentar colocar algo ligada às religiões de matriz africana como parte do programa de governo, que ele tem alguma ligação de “alma” com essas religiões. No post de Sonaira (em conjunto com a página QG Bolsonaro), ela comenta que “Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição”.
Acho que nem cabe falar muito de Sonaira porque ela é uma personagem meio incidental. Não interessa por ser de uma igreja (pelos seus posts recentes e pelas manifestações na mídia, nem é possível dizer de qual igreja ela é, o que sempre é algo meio estranho entre evangélicos, que quase sempre identificam com clareza onde congregam), mas por ter sido funcionária do gabinete de Eduardo Bolsonaro, de quem ainda é próxima, e depois chefe de gabinete do deputado estadual Gil Diniz, conhecido como Carteiro Reaça, ele próprio também ex-funcionário de Eduardo. Em 2020, quando a jovem Sonaira se elegeu vereadora com pouco mais de 17 mil votos, pelo Republicanos, partido ligado à Universal, ela foi a única candidata a vereadora de São Paulo para quem o próprio Jair Bolsonaro pediu voto diretamente. A agenda dela é a agenda de costumes padrão dos evangélicos bolsonaristas (contra o aborto, propalando que cristãos sofrem de preconceito religioso, contra a “ideologia de gênero”, etc.).
Mas o post dela primeiro reforça o evangélicos pensam sobre as religiões de matriz africana. Vale destacar que esse é um caso em que o pentecostalismo e o neopentecostalismo influenciam a igreja evangélica como um todo. Em geral, protestantes históricos (igrejas protestantes tradicionais ou de missão, como luteranos, anglicanos, presbiterianos, congregacionais e batistas) desconfiam da existência na atualidade ou, ao menos, da profusão de fenômenos anômalos ou extraordinários ou de experiências místicas. Não no Brasil.
Abre parênteses
(Não pretendo aqui fazer um trabalho sociológico, mas o holandês Andre Droogers, que estudou o fenômeno religioso no Congo e no Brasil, dá boas dicas de como há algumas aproximações sincréticas nas religiões de caráter popular no Brasil que acabam forma uma espécie de caldo de cultura com crenças comuns ou aproximadas compartilhadas por religiões diferentes e por vezes rejeitadas pelas ortodoxias dessas religiões. No Brasil, tanto as religiões de matriz africanas recebem forte carga sincrética quanto o próprio catolicismo popular e o protestantismo. Droogers acaba desenvolvendo esse conceito na ideia de uma religiosidade mínima brasileira.)
Nem tão breve explicação
[O pentecostalismo é um fenômeno muito estudado em ciências da religião e muito pouco entendido por quem não é crente. Ele nasce a partir da experiência de dois pastores que tinham sido metodistas e que passam a ter um entendimento de que o batismo do Espírito Santo é um fenômeno religioso, místico, pelo qual o crente é revestido de poder por Deus. Esses dois pastores são Charles Fox. Parham e William J. Seymour, um pastor negro, cujas pregações levam a um avivamento na rua Azusa, em Los Angeles, inclusive desafiando a segregação entre negros e brancos. A lógica do avivamento é que uma igreja inteira, ou às vezes toda uma comunidade, uma cidade, um estado, passa a ter uma sucessão de experiências místicas, encontros com Deus, numa grande experiência coletiva, por vezes extática. Esse avivamento leva a um maior entendimento da fé e maior adesão a ela por outras pessoas que antes criam. No caso da rua Azusa, há algumas diferenças: primeiro, a força dessa experiência extática, sobrenatural. Depois, a percepção que receber o batismo do Espírito não é só passar a se entender como cristão, converter-se por aceitar uma mensagem racionalmente apreensível, mas, passando por uma experiência extraordinária, receber efetivo poder vindo dos céus. A evidência desse revestimento de poder era, basicamente, a glossolalia, ou a possibilidade de falar em línguas estranhas. Em algum momento devo detalhar um pouco mais esse fenômeno, inclusive porque Michelle já chocou o Brasil ao falar em línguas para agradecer a aprovação de André Mendonça para o STF. Por ora, o que é precisa entender é que o pentecostalismo nasce de um avivamento, que ele entende que falar em línguas estranhas é sinal do revestimento pelo poder de Deus, e que disso também podem derivar outras experiências sobrenaturais, como curas miraculosas, profecias e visões.]
O pentecostalismo chega no Brasil pouquíssimo tempo depois da rua Azusa, ainda na primeira década, pelas mãos dos fundadores da Assembleia de Deus (a maior vertente evangélica brasileira, com mais de 12 milhões de fiéis). E ele influencia a igreja evangélica imediatamente ajudando a popularizar a crença que se torna quase unânime, entre evangélicos, da existência e realidade de fenômenos sobrenaturais, da profusão desses fenômenos, e também da ideia de que há uma realidade espiritual, uma realidade diversa da material e subjacente à ela, que na verdade não só se relaciona com a realidade física ou material, como exerce grande influência sobre ela.
Não sei ao certo se Tostines vende mais porque é mais fresquinho ou é fresquinho porque vende mais. Se o pentecostalismo obtém mais sucesso por causa de um espiritualismo (nesse sentido lato de que uma realidade espiritual se sobrepõe à realidade material) que também já está presente de certa forma na umbanda e no kardecismo, e no catolicismo popular (já que os santos intercedem por nós, os anjos da guarda nos acompanham, o diabo nos tenta), ou se a igreja evangélica se torna mais espiritualista por causa da profusão dessas ideias entre brasileiros, não sei ao certo.
Mas é interessante notar que a fé protestante reformada poderia simplesmente negar a existência de orixás e o poder deles, dizer que se trata de autossugestão, balela, charlatanismo (pela doutrina mais estrita das igrejas protestantes históricas, isso seria até o caminho natural). Mas no pentecostalismo, primeiro, e especialmente no neopentecostalismo, a rejeição às religiões de matriz africana se dá por meio de uma validação, de um reforço positivo: em geral, os crentes acreditam em espíritos e orixás, na capacidade de trabalhos de pais de santos efetivamente alterarem a realidade, nas incorporações, na realidade das experiências místicas de pessoas na umbanda, candomblé (e também no kardecismo).
Mas os crentes ainda são (ao menos declaradamente) monoteístas, o que significa que acreditam em um só Deus, e que portanto não faz sentido atribuir a ele forças que inclusive antagonizam entre si. Então, eles fazem uma leitura da Bíblia segundo a qual se reconhece o poder sobrenatural de entidades do mundo espiritual, mas atribui todas esse poder a entidades menores que Deus, que se opõe à ele — em suma, demônios coordenados pelo Diabo, um chefe espiritual daquelas entidades espirituais que se revoltaram contra Deus e batalham contra ele, e que, por causa do grande poder de Deus, serão, no fim dos tempos, fatalmente derrotados por Deus.
Trata-se, portanto, de uma versão de batalha espiritual que também existe, com outros sentido, em outras religiões espiritualistas. Essa batalha acontece num plano que os homens não apreendem completamente, mas de certa forma os homens também são convocados a tomar parte nessa batalha e podem, se tiverem bastante e fé e poder, influenciar essa batalha a favor de Deus. (No neopentecostalismo, especialmente na Universal, o sincretismo com religiões de matriz africana, a validação do poder dos orixás, o efetivo protagonismo e exposição midiática dos “endemoniados” e dos “cultos de libertação” levam isso tudo ao paroxismo, mas devemos nos deter mais nisso em algum outro post mais à frente.)
É por isso que Sonaira diz: “Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas”. Porque ela se vê como parte integrante dessa batalha espiritual, essa mesma batalha que reforça positivamente a realidade espiritual e o poder das entidades nas quais creem os fiéis das religiões de matriz africana, mas ao mesmo tempo os demoniza, vendo-os como inimigos nessa batalha espiritual.
Vale destacar que nessa frase de Sonaira ainda tem uma contradição performativa: porque ela diz que a batalha é contra principados e potestades (contra demônios), mas evidentemente os personaliza em um inimigo (objetivo e físico, não exclusivamente espiritual). E também, é claro, desloca o foco da guerra espiritual (que poderia ser resolvida com oração, por exemplo) para uma disputa que exige ações políticas, efetivas, no mundo real, como se ele é que se sobrepusesse ao espiritual. Há, mas isso é bem mais recente, nesses posts desse novo conservadorismo cristão, um apagamento das fronteiras entre o espiritual e o ordinário, físico, carnal.
Acho que quem deu primeiro foi a Mônica Bergamo: Michelle Bolsonaro associa religiões africanas a 'trevas' - 09/08/2022 - Mônica Bergamo - Folha