Lagoinha, o mais recente púlpito de Bolsonaro
Jair e Michelle Bolsonaro falaram em uma igreja de Belo Horizonte no último domingo. Como essa igreja se tornou a mais influente na igreja evangélica brasileira há duas décadas?
Para primeiro texto deste didaquê, cabe explicar a motivação para escrever (mais) sobre política. A semana começou com o presidente Jair Bolsonaro frequentando mais um culto (em algum momento, devo fazer o trabalho chato de contar quantos foram no período pré-eleitoral), com direito a mais uma mensagem da primeira-dama (que também merece uma série só para ela) e cobertura da mídia que encontrou até a série documental do momento1. Quem quiser ver o trecho da recepção ao presidente em mais uma igreja no último domingo, pode encontrá-lo aqui.
Mas a atenção desse primeiro post vai especificamente para o palco: a Igreja Batista da Lagoinha – que igreja é essa, qual a relevância dela e como ela se tornou uma grife e foi por um tempo a igreja mais influente do Brasil.
A Lagoinha (como é chamada hoje) é uma igreja que foi fundada em 1957 como uma igreja batista da Convenção Batista Brasileira, convenção da qual foi excluída em 1964 porque passou pelo que se chama de avivamento espiritual e se tornou uma igreja avivada.
Breve explicação
[A igreja batista é hoje o segundo maior grupo de evangélicos no Brasil (com 3,7 milhões de pessoas, só perde para as várias vertentes da Assembleia de Deus) e é uma igreja de missão tradicional – significa basicamente que tem cultos solenes, muito mais contidos e a expressão religiosa não se caracteriza por experiências místicas ou extáticas, em geral. É bem diferente, em geral, do estereótipo comumente atribuído às igrejas pentecostais ou neopentecostais – apesar de haver uma herança americana forte das igrejas negras batistas do sul, com bastante ênfase à música de qualidade e pregadores carismáticos.]
Abre parênteses
(Para ter a referência dos americanos, Martin Luther King Jr. era pastor batista, e também o televangelista Billy Graham, retratado em The Crown, e conhecido por ter sido conselheiro da rainha Elizabeth II, muito próximo do presidente Richard Nixon, muito influente na conversão de George W. Bush, e conselheiro de basicamente todos os presidentes americanos entre Truman e Obama. Aliás, Bill Clinton também é batista, como Jimmy Carter e Harry Truman, ou Kamala Harris. Nos EUA, é a coisa mais comum do mundo, especialmente na música, mas não só, crescer numa igreja batista: Aretha Franklin, B. B. King, Magic Jonhson, Avril Lavigne, Britney Spears, Justin Timberlake, Will Smith, Oprah Winfrey, Johnny Cash, Chuck Norris, Brad Pitt, todos cresceram batistas, alguns ainda são. Eu resumiria que o crente batista é basicamente o arquétipo do protestante americano que vai à igreja, aquele arquétipo que você talvez tenha assistido em vários filmes – acho que o melhor exemplo simplificador da ficção é a protagonista de Um Amor para Recordar. Essa é a imagem que você pode ter na cabeça quando alguém fala “fulano é batista”.)
A Igreja Batista da Lagoinha se afasta dessa tradição batista tradicional por ficar mais renovada, mais pentecostal, o que significa que ela passa a aceitar experiências extáticas como pessoas falando em línguas (prometo um post sobre isso um dia também), profecias e curas. Na época, o pastor era José Rego do Nascimento. Houve uma sucessão de pastores com essa nova característica, até que assumiu como pastor da Lagoinha o pastor Márcio Valadão, um jovem solteiro de 23 anos, que tinha se convertido em 1966 e pastoreava desde 1970, aos 21 anos. Márcio Valadão assumiu como pastor da Batista da Lagoinha em 31 de julho de 1972 – e era essa data que a igreja estava comemorando, 50 anos depois.
Quando Valadão assumiu a igreja, ela tinha 300 membros. Hoje, tem 92 mil membros, 600 templos, presença em todos os estados do Brasil e mais 12 países, está em 6 cidades nos EUA e 7 na Inglaterra, uma rede de TV (Super, em BH), e já teve uma ministra como pastora (Damares Alves) e ainda tem um ministro entre seus membros (Fábio Faria).
Como a Lagoinha se tornou a igreja mais influente do Brasil
O que aconteceu nesse tempo? A Lagoinha formou em 1997 um grupo de música cristã para tocar na igreja chamado Diante do Trono, liderado pela filha de Márcio, Ana Paula. O grupo atingiu um nível de profissionalismo que fez dele sinônimo de música gospel. Se você entrou em alguma igreja evangélica, qualquer uma, entre 1999 e 2010, você certamente reconhecerá algumas músicas entoadas por Ana Paula Valadão, como Te Agradeço, Preciso de Ti, Aclame ao Senhor. Ou se você foi a alguma festa de 15 anos de uma menina evangélica ali em meados da década de 2000, você deve ter ouvido a música chiclete empoderada e anti-bullying preferida das adolescentes Aos Olhos do Pai (você é uma obra primaaa).
Também é muito provável que algumas das referências da cultura gospel sejam herdadas diretamente do sucesso de Ana Paula Valadão e do Diante do Trono, como os balés com roupas largas esvoaçantes, com movimentos apontando para o alto e rodopios abrindo as asas, ou a banda de metais muito marcante. Ou ainda a voz meio chorosa que é muito característica de Ana Paula e se tornou um padrão nas orações e ministrações de música de igrejas evangélicas em todo o Brasil.
Entre 1999 e 2020, o Diante do Trono lançou nada menos que 33 álbuns ao vivo, 19 álbuns de estúdio, e 11 álbuns na série Crianças Diante do Trono – que é mesmo uma espécie de Ana Paula Valadão só para baixinhos. É provável que ainda que você não conheça nada disso de que estou falando, você pelo menos se lembre de como viralizou o clipe com o refrão “quem pecar vai pagar, quem pecar vai morrer”, da música com o título sugestivo Deus Nos Amou, cantada por personagens de animação computadorizada meio tosca numa espécie de Mágico de Oz gospel, com Ana Paula Valadão vestida de macacão vermelho.
O Diante do Trono foi o grande responsável por pelo menos 10 anos ininterruptos de boa parte da música evangélica tocada nas igrejas e de parte da formação das crianças evangélicas em um momento de forte crescimento dessa população no Brasil, e de boa parte do que os não evangélicos têm como estereótipo do que é o gospel. E nada disso é sem razão. O ministério de música da Batista da Lagoinha também é um dos principais responsáveis pela atenção dada pelas gravadoras seculares (ou seja: não exclusivas de música gospel, as gravadoras normais) ao mercado gospel. O próprio Diante do Trono assinou com a Som Livre em 2009, depois de vários álbuns por gravadora própria. Do grupo, saíram, além de Ana Paula e o irmão, André Valadão, Nívea Soares, Helena Tannure e Israel Salazar, entre outros. Da Lagoinha também se notabilizou no marcado gospel o ex-backing vocal do Jota Quest Thalles Roberto, de Deus da Minha Vida.
Números
O álbum mais vendido do Diante do Trono, de 2001, bateu 2 milhões de venda. Outros três bateram a marca de 1 milhão, todos no auge do sucesso, entre 2000 e 2003. Ao todo, foram mais de 15 milhões de álbuns vendidos.
Hoje, o Diante de Trono ainda tem 1,29 milhão de inscritos no Youtube. Ana Paula tem 3,2 milhões de seguidores no Instagram e 3,9 milhões no Facebook. André, irmão dela, também pastor, que começou no Diante do Trono e logo se destacou em carreira solo, tem 5 milhões no Facebook e 5,3 milhões no Instagram, onde responde caixas de stories dando dicas sobre fé e fazendo tiradinhas de humor crente.
O que isso significa
Essa é a Igreja Batista da Lagoinha. É muito comum entre evangélicos tecer algumas críticas ao Diante do Trono, mas todas as igrejas, em algum momento, foram influenciadas pela Lagoinha. Além disso, mesmo entre os críticos do viés comercial demais do Diante do Trono, há um reconhecimento bem perene:
1- da capacidade de produzir algumas boas músicas cristãs contemporâneas, ao menos em até certo período, com letras e melodias que são ainda hoje uma espécie de mínimo múltiplo comum da igreja brasileira, referências culturais que todos os evangélicos têm;
2- ainda que não se goste de Ana Paula Valadão e André Valadão, os dois expoentes mais populares da igreja, mesmo que não se goste do Diante do Trono e da Lagoinha, é bem comum a ideia de que Márcio Valadão é um pastor respeitável; ele é de certa forma poupado das críticas que recaem mais sobre seus filhos, que estão mais expostos à mídia, embora seja claro que ele é o grande arquiteto do sucesso da Lagoinha.
Quando Bolsonaro pisa lá e reverencia Márcio Valadão, ele está acenando para uma memória afetiva dos evangélicos; quando Michelle trata Ana Paula Valadão como uma fã que conheceu seu ídolo, ela ativa a identificação de algumas gerações de pessoas que cresceram sendo impactadas pela voz chorosa da pastora mineira. Bolsonaro talvez não tenha noção exata desse poder da Lagoinha, e apela de forma genérica para evangélicos com frases que nenhum crente seria capaz de rejeitar nem para seus inimigos, quanto mais para uma autoridade (Deus te abençoe; estou orando por você). Michelle, no entanto, cada vez mais à vontade com o púlpito e o microfone, sabe exatamente onde está pisando, ou, para ficar em mais uma imagem religiosa, sabe onde toca a planta dos seus pés.
2 Moisés, meu servo, é morto; levanta-te pois agora, passa este Jordão, tu e todo este povo, para a terra que eu dou aos filhos de Israel.
3 Todo lugar que pisar a planta do vosso pé, vo-lo dei, como eu disse a Moisés.
4 Desde o deserto e este Líbano, até o grande rio, o rio Eufrates, toda a terra dos heteus, e até o grande mar para o poente do sol, será o vosso termo.
5Ninguém te poderá resistir todos os dias da tua vida. Como fui com Moisés, assim serei contigo; não te deixarei, nem te desampararei.Josué 1
Também merece post só para esse tema, mas seguem os links:
Igreja coloca Bolsonaro e assassino de Daniella Perez juntos (Na Telinha)
Bolsonaro e Guilherme de Padua vão à mesma igreja em Belo Horizonte - ISTOÉ Independente
Bolsonaro visitou igreja de Guilherme de Pádua em BH - 09/08/2022 - Ilustrada - Folha