Ouça o que Malafaia tem a dizer
Silas Malafaia fala abertamente e sem reservas o que boa parte dos evangélicos pensa. E faz isso há muito tempo

Estou devendo um texto que explica o que evangélicos pensam sobre liberdade religiosa. Provavelmente teremos outras oportunidades. Ainda estou pensando se esta newsletter deve trazer todas as notícias sobre evangélicos trazidas pela imprensa, porque comentar todas já está se mostrando inviável.
Hoje, no entanto, eu gostaria de indicar uma leitura do blog do Matheus Leitão, na Veja, com o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (um racha relativamente recente, de 2010, da Assembleia de Deus ministério Belém, protagonizado pelo próprio Malafaia). Malafaia esteve no dia 14 com Bolsonaro e Michelle na Marcha para Jesus, ao lado do pastor Jabes Alencar, da Assembleia de Deus do Bom Retiro, e fundador do Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil, e portanto uma das grandes lideranças dos pastores evangélicos no país, especialmente no estado de São Paulo. Michelle mais uma vez teve protagonismo na agenda com evangélicos (Uol). Bolsonaro falou genericamente contra aborto, “ideologia de gênero” e liberação das drogas. Ele também falou em liberdade e transparência (Correio) e convocou para o 7 de setembro. O que é liberdade, para cristãos, também talvez mereça um post um dia. É bom lembrar que no dia 6 Bolsonaro esteve em outra Marcha Para Jesus, na Boa Viagem, em Recife, ainda antes deste blog começar.
Mas vamos à entrevista de Malafaia, esse antigo conhecido dos evangélicos que gostam de dar opinião sobre política.
Breve contexto
[Matheus Leitão, jornalista, é filho da jornalista Míriam Leitão. Míriam, muitos não sabem, é filha do Rev. Uriel de Almeida Leitão, pastor presbiteriano e educador mineiro, que fundou o Colégio Caratinga e as Faculdades Integradas Caratinga, no leste de Minas. Matheus é evangélico e tem alguns textos interessantes sobre o tema, embora o texto dele que mais tenha me tocado e de certa forma seja também um relato sobre perdão e fé seja este texto no Brio com a entrevista que fez com o delator da mãe e do pai dele na ditadura (Míriam foi torturada grávida depois de presa. Matheus recebeu o nome por causa do codinome do pai).]
Pois bem, o Matheus Leitão está publicando no blog dele uma série de entrevistas com evangélicos que ajuda a entender esse segmento também. Até agora, tinha dado preferência a alguns dos grandes pensadores e ativistas evangélicos que são, cada um a seu jeito, produto da igreja evangélica brasileira e que se tornaram grandes críticos dela, como o ex-pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa, o também ex-pastor presbiteriano Caio Fábio, o pastor batista Ed René Kivitz e o cantor Leonardo Gonçalves. Todos falaram a Rodolfo Capler, também pastor e teólogo e pesquisador do Labô da PUC-SP.
Abre parênstes
(Em 2010, eu também entrevistei Silas Malafaia em uma de suas primeiras investidas para se tornar um grande influenciador político dos evangélicos. Eu era estagiário da Veja, e o repórter Leonardo Coutinho teve a excelente percepção de que o debate sobre aborto podia estar impactando o voto evangélico na eleição. Gerou aquela famosa capa de Veja com duas Dilmas invertidas, em vermelho e branco, em que a então candidata petista dava duas declarações controversas sobre aborto. Essa capa se tornou injustamente atacada por supostamente transformar o debate eleitoral em debate religioso. Na verdade, a reportagem do Leonardo Coutinho, um dos repórteres mais hábeis com quem trabalhei, e editada por Felipe Patury, um editor fora de série, percebeu um fenômeno real antes de todo mundo.
(Como parte da análise, a Veja descobriu o quanto as buscas no Google pelas opiniões de Dilma foram impactadas por um vídeo de um pastor de Curitiba, Paschoal Piragine, da Primeira Igreja Batista de Curitiba. Esse trabalho de análise a partir de dados da internet é algo que faço todo dia hoje e que o Leonardo Coutinho teve a ideia inovadora de fazer numa reportagem em 2010. As igrejas batistas de Curitiba ainda dariam à política brasileira duas figuras do porte de Deltan Dallagnol e Joice Hasselmann, mas isso é assunto para outra hora. Piragine fazia campanha clara contra o PT e via no partido uma espécie de inimigo dos cristãos. Nessa época, Edir Macedo, Magno Malta, Robson Rodovalho, Marco Feliciano, Marcelo Crivella faziam campanha aberta por Dilma. Eles talvez nem se lembram disso (Pragmatismo Político). Piragine começou a campanha que se cristalizaria como a mentalidade evangélica básica sobre o PT e ajudaria a reforçar o ódio contra o PT inclusive por alguns desses ex-aliados de Dilma. Também nessa época, conseguimos identificar a força do boato de que o vice de Dilma, Michel Temer, seria supostamente satanista. Isso era uma história antiga entre evangélicos que se reforçou muito em 2010 e que já nessa época dizia que ele seria presidente da República, mas isso também é assunto para outro post futuro. Essas duas histórias ajudaram a forjar a votação histórica de Marina Silva, então no PV.
(Eu era o estagiário que também era evangélico e fiquei responsável por entrevistar Silas Malafaia. Falei por telefone, e não me lembro com clareza, nem é possível retomar aqui o material publicado pela revista porque o Acervo VEJA está em manutenção. Eu tinha um pouco de medo de me tornar um repórter especializado em evangélicos, apesar de ter estudado cobertura da mídia de religião na faculdade. Então, também não havia tanto interesse por evangélicos quanto hoje. Mas de vez em quando eu falava com um. Para essa matéria, também falei com Robson Rodovalho, da Sara Nossa Terra. No caso de Silas Malafaia, ele já era figura conhecida para mim por causa da minha avó, que sempre via o programa dele. Lembro apenas da grandiloquência, que parecia se exaltar às vezes, que defendia uma espécie de direito dos evangélicos de participar da vida política, que falava da relevância da pauta do aborto para esse grupo. Não me lembro se criticava Marina Silva, o que fez algumas vezes naquela eleição, ou se defendia José Serra, candidato do PSDB. Um texto ainda no ar é do Reinaldo Azevedo defendendo Malafaia, que fala das posições dele de 2010. Pois é, o mundo capota.)
Malafaia, na entrevista a Capler, reforçou e aprofundou muitas ideias que já esboçava para mim em 2010. Vale destacar que ele é um sobrevivente e uma pessoa que se adapta aos tempos. Era ferrenho crítico da teologia da prosperidade nos anos 90. Hoje, vende um Bíblia da Batalha Espiritual e Vitória Financeira. Com Edir Macedo, com quem também compete por atenção nos programas televisivos, nunca se tornou amigo, embora os dois tenham se tornado de certa forma aliados para eleger Bolsonaro.
Na entrevista, Malafaia deixa clara uma espécie de ressentimento dos evangélicos de serem cobrados desproporcionalmente por participarem da esfera pública. Ele diz que nenhuma igreja nem a bancada evangélica indicou Damares Alves, André Mendonça, Milton Ribeiro (no que tem razão. Embora Damares seja uma cria da bancada evangélica, que ela assessorava, ela não foi indicada diretamente pelos deputados e se tornou conhecida de Bolsonaro por sua própria capacidade de articulação em prol de pautas conservadoras. André Mendonça chegou ao governo por indicação de Wagner Rosário, da CGU, e passou por análise de currículo e entrevista. Milton Ribeiro chegou por Mendonça).
Malafaia também deixa escapar uma espécie da noção que evangélicos têm sobre academia, que dá algum valor a títulos e referências acadêmicas, mas não consegue de certa forma separar as mais prestigiosas da menos (o que fica claro na na reverência pelo currículo de Milton Ribeiro e André Mendonça, que não são exatamente acadêmicos, e na referência acadêmica pop a Michael Sandel). Ele ainda faz deferência à reforma protestante e tenta desfazer a ideia de que há um projeto de poder dos evangélicos. E defende uma tese que eu também defendia há poucos anos de que não há univocidade entre evangélicos. Ironicamente, no entanto, ele advoga que eles estão juntos com Bolsonaro e se tenta se cacifar como representante dos evangélicos e os influenciar politicamente, com diretrizes morais que sirvam para todos eles.
Também se desincumbe de defender muito ferrenhamente Milton Ribeiro e Osni Ferreira, pastor presbiteriano da igreja do deputado Filipe Barros (PL-PR), em Londrina, que defendeu Bolsonaro no púlpito, mas de certa forma se coloca do lado deles.
Com Bolsonaro faz algo parecido: por um lado, rejeita a ideia de que ele é enviado de Deus, um Messias, e até estabelece uma diferença teológica entre vontade absoluta e vontade permissiva de Deus, explicando que a decisão sobre em quem votar pertence à esfera das decisões humanas permitidas por Deus. Mas, ao mesmo tempo, iguala a luta contra o PT a uma luta do bem contra o mal, reforçando sobretudo o discurso de que Lula é ladrão. Depois, ainda rejeita a possibilidade de um cristão ser de esquerda porque “ninguém pode servir a dois senhores”.
E aí passa a falar do “marxismo cultural”, escancarando mais uma contradição performativa dos evangélicos — a ideia de que há um Mal crescente, poderoso, ameaçador, que pode causar perseguição contra os evangélicos, que esse Mal é visível e que sua ameaça é iminente; mas que ao mesmo tempo ele não prosperará, porque aos filhos de Deus já foi dada a vitória. Ou seja: os evangélicos empoderam o Mal, porque isso é suficiente para mobilizar as bases para a batalha contra ele, para então reduzi-lo a nada, porque ele não pode vencer o povo de Deus (aparentemente Deus só garantiria sua vontade no fim, segundo essa lógica).
Como já me demorei mais do que queria, reforço a dica de ler a entrevista com Malafaia.
Podem me cobrar, em breve, um post sobre a fala de Marco Feliciano, o ex-aliado de Dilma, sobre a suposta intenção do PT de fechar igrejas.