O racha entre evangélicos tem alguma coisa a ver com o bolsonarismo?
O que Juliano Spyer no texto da Folha e talvez os próprios crentes não tenham visto
Texto de Juliano Spyer publicado na edição Folha desta terça-feira (25/02/2025) gerou algum frisson entre evangélicos e estudiosos do tema. O título diz “Acusação de satanismo expõe racha na direita religiosa”, o que gerou a parte mais desinteressante do debate. Alguns viram no título um clickbait, mas acho que o mais provável é que ele deu uma ênfase que vou chamar aqui de erro de falante estrangeiro.
O Juliano Spyer é um especialista em evangélicos porque conseguiu entender, com um olhar de fora, mais ou menos o que pensam os evangélicos, sem muitos preconceitos, até porque ele se encantou com um olhar antropológico pelo que viu – sem correr o risco de se converter. Com isso, emplacou já dois livros que são uma espécie de guia sobre evangélicos for dummies, propriamente uma divulgação científica sobre a mentalidade evangélica, mais que pesquisa acadêmica sobre evangélicos (Spyer faz pesquisa antropológica e pesquisa de mercado sobre evangélicos de forma muito competente, mas evangélicos não foi o tema da pesquisa acadêmica dele). Por isso, ele não tem a pretensão, pelo menos não ainda nesse estágio, de falar em nome dos evangélicos e nem sequer de falar como se fosse um falante nativo do mundo evangélico, que algumas pessoas que estudaram evangélicos como pesquisa acadêmica conseguem emular melhor.
Daí o erro de falante estrangeiro. A acusação do pastor-youtuber Yago Martins ao pastor-influencer Deive Leonardo não foi pouco séria, o título do vídeo é “Deive Leonardo, a voz doce do diabo”. Qualquer falante nativo desse dialeto dos crentes conseguiria entender e traduzir que a acusação de Martins é de que Deive Leonardo é satânico, diabólico, porque ao falar heresias, está dando a voz ao inimigo. Não para de pé a acusação de satanista, que significa mais propriamente uma pessoa que presta culto de forma consciente a Satanás (e, sendo honesto, a principal vertente que se conhece como satanismo é um movimento ateu que ironiza as crenças cristãs e prega ideais individualistas e hedonistas). Mas a acusação de Yago é ainda mais séria, porque ele chama Deive Leonardo de “a própria voz do diabo”, “enviado do Diabo” e “muito mais perigoso que qualquer ateu”. Agora, embora não pare de pé a acusação de satanista, é assim que o próprio falante nativo, Yago Martins, fraseou a sua acusação neste ponto do vídeo: “Deive Leonardo é um satanista”. Infelizmente, isso soou uma acusação muito séria para o Spyer, sendo que o ataque mais sério era que, enfim, o pregador acusado é ele próprio um enviado de Satanás. “O ministério de Deive Leonardo é amaciar o caminho dos ímpios ao inferno”, diz.
Eu não pretendo discutir a teologia de Deive Leonardo, nem a de Yago Martins. Eu mesmo fui bloqueado no Twitter pelo Yago Martins e não lembro muito bem por quê, já que ele apagou todos os tweets antigos, inclusive os que causaram a bronca dele comigo. Sei que dei RT em um tweet dele que ele chamava de heresia a frase “toda refeição é uma eucaristia”, em uma referência a Ed René Kivitz. Falei que se o autointitulado teólogo [ele é formado em teologia, mas assim não chamo bacharéis em direito de juristas, nem bacharéis em filosofia de filósofos, não faz sentido nenhum chamar qualquer bacharel em teologia de teólogo] estudasse grego não falar essa besteira. Porque, claro, eucaristia, em grego, é ação de graças e obviamente pode servir para qualquer refeição de uma pessoa que agradece a Deus pelo alimento. Em outra discussão, ele me fez alguma acusação da qual não me lembro (tweet apagado) e eu disse que, para um pastor, ele falava de muitas coisas que não conhecia. Natural, já que também é youtuber, mas chato para um pastor. Por profundo desinteresse tanto na teologia de Yago quanto na de Deive Leonardo, não vou discutir as duas aqui, mas é bom destacar que Yago está aí há anos acusando os outros de hereges sem exatamente ser o grande exegeta de sua geração.
A outra polêmica no texto de Spyer é mais interessante. Ele entendeu que os ataques de Yago Martins a Deive Leonardo eram espelho de um racha políticos entre evangélicos, digamos, raiz e entre evangélicos mais bolsonaristas. No caso, o evangélico raiz seria Yago, um pastor batista de 32 anos, neocalvinista, e com extenso currículo de chamar os outros de hereges, 326 mil seguidores no Instagram e um canal no Youtube de 905 mil inscritos. O evangélico que é o queridinho dos novatos, que seria mais identificado com o bolsonarismo, é Deive Leonardo, 10,2 milhões de inscritos no Youtube, 16,8 milhões no Instagram, vídeos com milhões de visualizações com títulos como “Continue andando”, “Aprenda a tomar decisões”, “Crise de ansiedade”, “Quando tudo dá errado”, “Pare de brigar”.
O que estranhou parte dos evangélicos que por azar já conhecia os dois é ver uma associação entre esse racha e um suposto racha entre as igrejas evangélicas mais estruturadas e os evangélicos bolsonaristas (que seriam de alguma forma identificados com nomes como Pablo Marçal e Deive Leonardo), que inclusive se imprimiu na disputa pela presidência da Frente Parlamentar Evangélica. De fato, Spyer não explicou exatamente qual a ligação entre os dois fenômenos.
Todo mundo que já perdeu tempo com Yago Martins sabe que ele não precisa de muito para chamar alguém de herege. Todo mundo que conhece teologia protestante (de qualquer igreja) um pouquinho e já perdeu tempo com Deive Leonardo sabe que ele não deixa de dar combustível pra ser chamado de herege. Isso já leva qualquer um a perceber que não precisaria de nenhum movimento muito novo para que um vídeo como o do Yago fosse publicado agora.
Evangélicos são, por definição, pessoas que gostam de se acusar mutuamente de hereges, por mais que no Brasil tenha acontecido uma mágica por um século e meio que gerava uma espécie de paz pública – um acordo entre evangélicos para se entenderem como parte de uma mesma identidade evangélica brasileira, ainda que as culturas fossem tão diferentes que algumas igrejas vetassem casamentos com membros de outra denominação ou que egressos de uma igreja fossem obrigados a se batizar de novo quando chegassem em outra. Para fora, no entanto, imperava a tese de Peter Burke, e a identidade se formava em oposição ao catolicismo. É uma fenômeno natural de culturas minorias: você forma sua identidade na oposição do outro. Evangélico é aquele crente em Jesus que não é católico. Essa liga obviamente tende a perder cola quando a comunidade cresce. Se você chega numa sala de faculdade e há 60% de católicos, 30% sem religião ou ateus, mais alguns espíritas e só você e mais um evangélico, naturalmente vocês vão se apoiar um no outro como referências de pelo menos algumas visões compartilhadas de mundo, ainda que você use bermuda e beba cerveja e sua colega use saia abaixo do joelho ande com cabelo na cintura. Meu avô costumava dizer até sobre os irmãos da Universal: quem comigo não espalha ajunta, por meio deles as pessoas ouvem o Evangelho. É o tipo de mentalidade que era óbvia para meu avô, mas deixou de ser óbvia para Yago Martins ou para Deive Leonardo.
Mais ainda, se você conhece Yago Martins, você sabe que ele faz parte desse movimento neocalvinista de internet que provavelmente foi fomentado pelos pastores presbiterianos Augustus Nicodemus e Solano Portela, e o presbítero Mauro Meister, que são influencers de quando o nome que se dava a isso era blogueiro. E que esse movimento cresceu como defesa da fé reformada – ou seja, especificamente da teologia calvinista, e foi tomando, no Brasil, uma forma de fomento a ideias conservadoras de influência dos evangélicos na vida pública através da ação política. Primeiro, isso se deu de forma desorganizada. Depois, tomou corpo em congressos, seminários de teologia e centros de pós-graduação mais conservadores, que recomendavam a leitura de autores calvinistas holandeses como Abraham Kuyper, ex-primeiro ministro holandês e fundador do partido Anti-Revolucionário, e Herman Doyeweerd, que, de forma muito simplificada teorizam sobre a necessidade de cristãos influenciarem a vida civil pela ação política e pela cultura. Algumas dessas teses colaram perfeitamente nas do guru Olavo de Carvalho, anos mais tarde, que também pregava a necessidade de vencer a esquerda antes de mais nada no campo da cultura, como uma espécie de anti-Gramsci.
Essa influência neocalvinista se consolidou em um grupo de lobby chamado Anajure – Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que nasce com a missão expressa de defesa das liberdades civis fundamentais, especialmente a liberdade religiosa, mas que na prática se tornou um grupo de lobby de defesa de evangélicos. Esse grupo se apresentou como amicus curiae em ação para limitar a criminalização da homofobia, tentando preservar o que consideram a liberdade religiosa de pastores de afirmar oposição a práticas homossexuais; apresentou ele próprio uma arguição de descumprimento de direito fundamental (ADPF) para liberar cultos e missas durante a pandemia; e chegou a fazer campanha aberta para uma indicação de um ministro terrivelmente evangélico no governo Bolsonaro. Também organizou sabatinas para organizar apoios a candidatos a outros cargos públicos, cobrando assinatura de cartas de valores e declarações sobre o que entendem ser o respeito a direitos fundamentais que protegem os valores cristãos. Alguns neocalvinistas chegaram a ocupar cargos no Ministério de Direitos Humanos e se aproximaram de Damares Alves, uma antiga servidora do Senado que sempre trabalhou pela articulação desses temas na bancada evangélica, antes de se tornar ela própria uma estrela do bolsonarismo. O grupo também tinha proximidade com os ministros-pastores presbiterianos, André Mendonça, que acabou no STF, e Milton Ribeiro, da Educação.
É desse corrente de pensamento que Yago se aproxima (ele próprio não chega a ser da Anajure, que eu saiba), pelo que estranha falar que um racha coloca Yago de um lado e bolsonaristas de outro.
Quem leu as notícias do racha na bancada evangélica, por causa das candidaturas de Otoni de Paula (MDB-RJ) e de Gilberto Nascimento (PSD-SP), que se elegeu, pode ter a impressão de que estamos falando de um defensor das igrejas tradicionais (Otoni) contra um bolsnarista raiz (Nascimento). Na verdade, pastor da tradiconalíssima pioneira do pentecostalismo no Brasil, a Assembleia de Deus, e não de nenhuma igreja de coaches, e delegado de polícia, Gilberto Nascimento tem uma história de mais de 40 anos em cargos públicos, foi vereador em São Paulo desde os anos 80, deputado estadual nos anos 90, deputado federal pela primeira vez em 2003, chegou a ser cogitado para a suplência da Aloysio Nunes no Senado, e está em mandatos consecutivos na Câmara desde 2015. Passou pelo PMDB, PSB, PMDB de novo, PSDB, PSC, Podemos e, enfim, PSD. Hoje está no partido de Gilberto Kassab – aquele mesmo que é acusado pelo bolsonarismo raiz de ser estratégia da esquerda para afastar eleitores dos nomes da verdadeira direita. Os posts de Nascimento mostram um perfil sereno, conciliador, com publicações institucionais, fotos com senadores de centro, ministros do TCU, muitas fotos com Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ricardo Nunes (MDB), e um apoio natural a Bolsonaro em 2022.
Otoni de Paula agora é atacado como “lulista”, depois que se aproximou mais de Eduardo Paes, mostrou disposição de diálogo com o governo federal e disse que evangélicos estavam tratando Bolsonaro como um bezerro de ouro (numa referência à história dos hebreus no deserto, quando fizeram um ídolo para substituir Deus). Mas na verdade foi bem mais estridente na defesa de Bolsonaro durante seu governo e a eleição. Sugeriu que urnas estariam fraudadas, chamou Bolsonaro de imorrível, imbatível, incomível e invencível, saiu em motociatas, atacou o Supremo até 2023 e criticou a mídia por anos para defender Bolsonaro, a quem considerava “guardado por Deus”. Também foi investigado em inquérito das fake news. Ou seja: em matéria de bolsonarismo, parecia bem mais raiz que Gilberto Nascimento. Otoni vem de família assembleiana e fundou com o pai a Assembleia de Deus Missão Vida, com sede no bairro Colégio, no Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo, o jovem youtuber com ares de teólogo Yago Martins contribuiu com o caldo de cultura que proporcionou que a igreja evangélica abraçasse o bolsonarismo, sendo um grande militante contra o progressismo em meio cristão, afirmando que várias pautas de esquerda são contrárias à moralidade cristã, publicando até livro contra a caridade. Mas ele também notou, ainda durante o governo Bolsonaro, que havia uma espécie de asfixia da igreja evangélica em torno do bolsonarismo, como se não fosse possível discordar de Bolsonaro em alguns círculos cristãos e percebeu como esses círculos estavam ativando a fé para poder defender pautas ideológicas. É o tipo de nuance difícil de entender quando você olha de longe. Então existe um racha entre evangélicos e ele diz respeito a Bolsonaro de alguma forma ou não?
Toda tentativa de ver evangélicos como massa amorfa é reducionista, embora eles tenham sido tão monolíticos nas últimas eleições que dá para entender que tenha pensado isso. Na prática, a revolta de Yago Martins contra Deive Leonardo parece ser efetivamente uma dor de um líder de grupo minoritário que está perdendo as características de minoria. O evangelho pasteurizado de Deive Leonardo, que fala sobre vencer, sobre ansiedade, sobre aprender a tomar decisões, sobre enriquecer, é um evangelho mais palatável e mais vendável, enquanto o evangelho de Martins é um evangelho que depende da afirmação de identidades minoritárias. Os evangélicos só cresceram o quanto cresceram por causa, atraíram crentes famosos, sertanejos, funkeiros, atores de novela, políticos, porque existem essas mensagens que apelam pra um público cada vez maior e que enfrentam necessidades básicas e muito temporais desse público. Os evangélicos não estão chegando a um terço da população rejeitando discursos de coach. Mas se o evangelho não tem distintivos do resto da sociedade, para o que mesmo esse crescimento serviria, se ele não pode ser acionado por seus líderes?
Isso fala com o bolsonarismo porque o bolsonarismo representa o ápice dessa vitória cultural evangélica (para a qual Yago Martins contribuiu tanto quanto Deive Leonardo). Os evangélicos se tornaram uma religião tão enraizada na cultura brasileira que passou a ser comum pessoas que não vão à igreja ouvirem louvores, músicas de adoração tocarem em programas de TV aberta, ubers colocarem pregações para outras pessoas ouvirem, políticos que não se declaram evangélicos passarem a falar “glória a Deus” e a declarar que Sorocaba é do Senhor Jesus, pessoas genericamente crentes, que ninguém jamais viu frequentar uma igreja, se tornarem grandes ativistas pela família nos moldes dos desígnios de Deus, traficantes proibirem terreiros nos seus territórios porque exigem que ali se respeite apenas o nome de Jesus.
O bolsonarismo se beneficia como ideologia política dessa pasteurização do evangelho para que as pautas evangélicas que se identificam com o conservadorismo possam ser ativadas pela política de forma ampla, dessacralizada, independente da necessidade de adesão a uma igreja ou de uma fé. Você talvez já conheça gente que não tem igreja mas é culturalmente evangélica. Quando Yago Martins acusa Deive Leonardo de satânico talvez não seja porque ele se incomode com essa vitória cultural evangélica, mas porque ele não quer que essa pasteurização do evangelho que se espalha fora também chegue às igrejas.
De certa forma, trata-se mesmo de um racha dentro do bolsonarismo, e há obviamente um racha nas igrejas. Mas são rachas entre tipos e tipos de conservadores e entre tipos e tipos de crentes.
Uma coisa é clara: aquela disposição do meu avô de não falar contra outros crentes por motivos de pureza teológica ou por discordâncias quanto a questões morais, aquela suspensão de julgamento na lógica cristã do “quem não espalha, ajunta” e “o que importa é que o evangelho é pregado”, isso era uma concessão de grupos minoritários, que os crentes de hoje se dão o luxo de não fazer mais. Agora, Gilberto Nascimento e Otoni de Paula, Yago Martins e Deive Leonardo estão brigando pelo futuro de uma identidade que, se não é majoritária, se tornou culturalmente influente e politicamente poderosa. Não vejo como cristãos se beneficiariam caso qualquer um deles vencesse. Mas pelo visto os neocalvinistas mal chegaram a influenciar a cultura e já não gostaram do que estão vendo. (Também foi assim na Holanda. Assim como algumas vertentes comunistas e assim como os olavistas, vão dizer que as teses sempre estiveram, mas que precisam aplicar com mais intensidade, com mais pureza, com mais força, que nunca na verdade realmente tomaram o poder, porque jamais tiveram o controle da cultura.)