O povo de Deus na ótica do (jair-)messianismo brasileiro
Por que os evangélicos empunham a bandeira de Israel, torcem por uma guerra do outro lado do mundo e ignoram as mortes de cristãos em Gaza
Uma amiga (na verdade, ela é mulher do grande amigo de um grande amigo, mas a memória carinhosa vai me permitir essa aproximação para fins desse texto) que está há muitos anos nos Estados Unidos e Canadá veio me perguntar, preocupada, qual era a posição de evangélicos moderados brasileiros sobre a guerra na Palestina, porque ela tinha sentido que até gente que ela julgava razoável parecia estar numa posição muito parcial a favor do estado de Israel. Ela é mestre em religião e cultura e em aconselhamento psicológico pelo Covenant Theological Seminary, a principal instituição de formação da PCA (Presbyterian Church of America, a denominação conservadora presbiteriana dos EUA, que é um racha da PCUSA - Presbyterian Church of the United States of America, de caráter mais progressista e um pouco menos evangelical). Se alguém bem familiarizada com cultura americana e com a cultura evangélica conservadora estranhou o apoio unânime dos evangélicos brasileiros à guerra, aí tem uma história a ser contada. Nos Estados Unidos, o apoio popular a Israel, tanto pela influência da comunidade judaica nas cidades mais ricas, quanto dos protestantes nos rincões, é tão forte que governos republicanos e democratas jamais cogitam arredar em um centímetro a aliança com o estado de Israel, em qualquer circunstância. Mas essa amiga achou que lá nos Estados Unidos, as vozes sobre o conflito eram mais dissonantes do que aqui. Isso me instigou a voltar à Didaquê para escrever mais uma vez sobre o que pensam os evangélicos.
A imprensa cobriu o especial alinhamento dos evangélicos brasileiros com Israel. A Anna Virgínia Balloussier, da Folha, que é uma das repórteres com mais interesse e fluência em evangélicos brasileiros na grande imprensa, relatou como o cantor gospel André Valadão se referiu ao conflito com a certeza de que Deus tem um lado no conflito: “De todas as boas promessas do Senhor a Israel, nenhuma delas falhou; todas se cumpriram”; e também como a senadora-pastora bolsonarista Damares Alves assumiu lado na guerra com declaração de amor: “Ó, Israel, como te amo!”. Foi a mesma percepção que teve a minha amiga Letícia Mori, na BBC Brasil. O dublê de portal evangélico e site bolsonarista Pleno News registrou a união de evangélicos e judeus em manifestação pró-Israel na Paulista, no domingo.
Uma das origens da explicação é mesmo a influência americana sobre o evangelicalismo brasileiro. Entre democratas, o apoio a Israel vem da influência da bem-educada, rica e cosmopolita comunidade judaica do nordeste dos Estados Unidos e da Califórnia. Entre republicanos, esse apoio vem justamente de uma visão teológica muito difundida entre evangélicos que vê em Israel (o país, a unidade política que reúne judeus e outros povos sob um estado majoritariamente judeu na terra palestina, onde também houve um reino judeu na antiguidade e uma província romana com população judia até o primeiro século) a correspondência correta e legítima do povo que descende de Abraão e, portanto, esse atual Israel é legítimo herdeiro literal das promessas que Deus (o mesmo Deus dos cristãos) fez para Abraão, o patriarca dos hebreus, na história relatada no livro de Gênesis, bem como das promessas feitas a Moisés, no deserto do Sinai. Essa visão também vê nas guerras do atual Israel um cumprimento de profecias apocalípticas feitas aos cristãos dos primeiros séculos, como explica Sarah Posner, na MSNBC. Até hoje, como mostrou o Washington Post em 2018, 80% dos evangélicos acredita que a promessa de Deus para Abraão e seus descendentes valia para sempre e, claro, é ao atual país Israel que ela se aplicaria. A NPR lembrou ainda que quem reforçou essa visão foi o televangelista Billy Graham (aquele já retratado em The Crown, que eu já mencionei aqui na Didaquê), ao visitar Israel na década de 60 – ironicamente, Graham era conhecido por promover cruzadas evangelísticas em todo o mundo.
Isso explica parte da história. Mas não explica o estranhamento da minha amiga. Parte do apoio a Israel é gestado não só nas importações do neoconservadorismo republicano e evangelical americano para a direita brasileira. Mas a leitura de Israel como povo de Deus já estava presente no Brasil há décadas – décadas antes até de Billy Graham. Quando eu era criança (se bem que isso foi décadas depois do Billy Graham vir aqui), já era possível ver nas igrejas evangélicas (e a minha era uma protestante histórica) o fascínio pela bandeira de Israel. Quando eu tinha 14 anos, lembro de uma amiga (minha primeira quase-namoradinha) que fez, em Governador Valadares, uma festa de Bat Barakah, que significa filha da bênção em hebraico, um rito de passagem para marcar a chegada da idade adulta para uma jovem judia. Essa amiga frequentava uma igreja que era conhecida como “tenda”, que funcionava exatamente numa estrutura provisória de lona, como o tabernáculo dos hebreus no deserto. Na frente, havia uma mesa com uma bandeira de Israel e um candelabro com 7 velas.
Resolvi recorrer ao Antônio Gouvêa Mendonça, em O Celeste Porvir, uma das melhores análises sobre a formação da identidade evangélica brasileira. No livro, ele faz uma análise do que pensavam os evangélicos das primeiras décadas após a chegada do protestantismo do Brasil através dos hinos mais amplamente aceitos e tocados nas igrejas. Ele teve uma sacada interessante do caldo de cultura que formou a identidade evangélica brasileira e que dá uma dica de como chegamos a Israel:
O transplante do protestantismo americano para o Brasil foi duplamente comprometido; de um lado pela teologia dos missionários que tinha bebido na fonte comum do melting pot religioso norte-americano, com sua teologia dos avivamentos, igreja espiritual, escolaticismo, pietismo e apocalipsismo, e de outro lado pelas condições do novo ambiente, com seu sistema piramidal-hierárquico, pobreza e isolamento social, que favoreceu o escapismo, assim como o dincionamento religioso dos próprios adeptos.
Mendonça, Antônia Gouvêa. O Celeste Porvir: A inserção do Protestanstismo no Brasil. 3. ed., p. 333. São Paulo: Edusp, 2008.
Mendonça analisou 437 hinos e cânticos editados no título Salmos e Hinos em 1899, dos quais 375 tinha temas cristológicos (centrados na figura de Cristo). Desses, 104 ele encaixa no que chama de protestantismo milenarista, além de 38 no protestantismo guerreira e 216 no protestantismo pietista. Sobre o protestantismo milenarista, Mendonça explica que o contexto cultural brasileiro favorecia uma espécie de messianismo, que fortalecia a mensagem milenarista. Essa mensagem consistia na expectativa de que haveria uma intervenção divina direta para estabelecer o Reino de Deus na terra. A ideia que se sobressai no Brasil é exatamente do pré-milenismo: o cristão deve estar pronto para uma iminente segunda vinda na qual o Messias estabelecerá seu reino.
Essa noção parte de uma interpretação literal do texto bíblico, mais especificamente do Apocalipse. Em geral, há, entre os pré-milenistas, em especial na vertentes dispensacionalista, uma crença de que o mundo vai se tornando progressivamente pior até essa intervenção messiânica, quando sua igreja será arrebatada antes de um período de tribulação que precede a vitória de Cristo sobre a Besta (o inimigo, identificado com o Diabo). Só depois dessa vitória, será estabelecido um reino literal de mil anos de Cristo, que reinará em uma nova Jerusalém. Por décadas, americanos e brasileiros, especialmente, foram influenciados por material dispensacionalista, como a série de livros, também tornada série de filmes, Deixados para Trás, de Tim LaHaye, e uma miríade de referências a arrebatamento (quando num evento milagroso, instantâneo, pessoas escolhidas por Deus desaparecem de uma vez, deixando o mundo sem elas, causando acidentes de avião e carro, deixando para trás familiares etc.).
É interessante notar que o dispensacionalismo, no Brasil, encontra terreno tão fértil que parece ser a norma até mesmo em igrejas que, nos EUA, são amilenistas (não têm nenhuma leitura literal dos mil anos do Apocalipse, como é o caso de todas as protestantes históricas mainline). Várias organizações interdenominacionais se dedicam especificamente a fazer uma pregação focada nos eventos dos fins dos tempos.
(Certa vez, estava comentando com um pastor amigo que não entendia qual era a linha da Organização Palavra da Vida, uma organização americana trazida ao Brasil, aqui com sede em Atibaia. O Palavra da Vida é conhecido entre evangélicos por seus acampamentos, reunindo jovens das mais diferentes igrejas, e também por um grande seminário interdenominacional, que recebe batistas, presbiterianos, congregacionais, assembleianos, tanto para se tornarem pastores como para formação de líderes. Muito culturalmente americano, proibia até 2019 que seus missionários e alunos frequentassem cinemas e dava recomendações estritas de tamanho de roupa dentro do seminário e dos acampamentos. Eu achava estranho o fato de que havia, entre os professores do Palavra da Vida, pessoas com diversas linhas de pensamento sobre salvação, dos mais calvinistas, que acreditam em predestinação, aos mais arminianos, que, grosso modo, acreditam que se pode perder a salvação porque ela depende da ação humana. Em geral as definições sobre salvação são suficientes para rachar igrejas evangélicas. Esse pastor amigo me abriu os olhos: é bem simples, eles são todos dispensacionalistas. A Organização Palavra da Vida, segunda a tese dele, com que concordo, tem sua ênfase exatamente no anúncio da segunda vinda de Cristo, nesse período que precede o “milênio”).
Isso tem tudo a ver com a visão dos crentes brasileiros sobre Israel. Para eles, Israel jamais deixa de ser o “povo escolhido”, o povo de Deus, e a promessa feita por Deus a Abraão não é apenas um selo espiritual para todos aqueles que creem, como Abraão, mas uma efetiva promessa para a descendência direta de Abraão, independentemente de eles terem ou não aceitado Jesus como seu salvador. Ao contrário do que faz boa parte dos cristãos, que consideram que a promessa passa à Igreja, se cumpre na igreja, os dispensacionalistas veem no próprio povo hebreu, mais especificamente nos judeus, o cumprimento da profecia de que Israel será uma grande nação. E Israel, hoje, é a Israel da promessa. O Israel de hoje é o povo de Deus. Eles veem os judeus como destinatários de várias promessas de Deus, e como sinal do cumprimento de profecias da segunda vinda de Cristo. As guerras, em especial a proliferação delas, estão no imaginário dos crentes dispensacionalistas como um antecedente desses eventos apocalípticos, prenunciando o fim dos tempos.
Obviamente, isso não vem sem algum antissemitismo disfarçado de filossemitismo. Em vez da ideia medieval de judeus que mataram Jesus Cristo, há uma devoção por Israel e pelos judeus, uma romantização da linhagem de casamentos endogâmicos e da manutenção da cultura na diáspora, um reforço do mito de que é por causa da promessa que eles são todos bem-sucedidos, que são um povo mais bem educado, mais inteligente, mais abençoado que outros povos. E também há ideia de que eles não perderão nenhuma guerra.
Esse povo vê seus devaneios de cumprimento da própria profecia religiosa nessa vitória do povo judeu e do estado de Israel, de um reino em Jerusalém dominada por judeus (é isso que fez com que o trumpismo e o bolsonarismo defendessem mudanças de embaixadas em Israel para Jerusalém, reconhecendo Jerusalém como capital dos judeus, para agradar os dispensacionalistas). Para quem pensa assim, natural torcer e se alinhar com aquele povo que pode vencer e estar do lado certo da história no momento do fechamento da história da humanidade.
Não estranha, portanto, que esse amor por Israel (unidade política que representa um cumprimento de uma promessa para uma linhagem étnica; e não apenas conceito teológico para expressar todo aquele que integra a igreja de Cristo), ainda mais especialmente no Brasil que nos Estados Unidos, não se reflita nem sequer em compaixão e luto pelos cristãos mortos em Gaza. Com a lente de que Israel está lutando contra seus inimigos, os evangélicos brasileiros nem sequer são capazes de diferenciar árabes de muçulmanos. Além disso, não têm comunhão com as igrejas do Oriente, preferindo o alinhamento com símbolos dos judeus.
O hospital Al Ahli Arab, bombardeado na semana retrasada era anglicano, ligado à paróquia de Jerusalém da igreja episcopal americana, e por algumas décadas foi conduzido por uma missão batista. Agora, tudo indica que a explosão se deu de fato no estacionamento, e que foi fruto de uma falha em um foguete lançado pela Jihad Islâmica Palestina, e não por bombardeios de Israel. Tudo também leva a crer que não morreram as 500 pessoas anunciadas pelo Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas. Mas antes de sabermos esses detalhes, não vimos os cristãos lamentando as mortes de pessoas atendidas por uma missão cristã na Palestina.
Na quinta-feira, dia 19, a igreja cristã mais velha de Gaza, a igreja ortodoxa grega de São Porfírio, foi bombardeada, dessa vez tudo indica que por Israel. Morreram 18 pessoas, entre os 400 que estavam se abrigando na igreja, cristãos e muçulmanos.
No dia 20, Damares Alves comentou sobre a guerra na Ucrânia e fez uma live pelo Dia Nacional de Valorização da Vida. Nenhuma menção à igreja cristã bombardeada em Gaza. Desde o dia 20, foram 95 posts feitos por 20 parlamentares evangélicos citando Israel ou Hamas. Foram 14 parlamentares evangélicos que mencionaram “igreja”, 42 vezes. Nenhum deles se lembrou da Igreja de São Pofírio. Nem o cristianíssimo Nikolas Ferreira, nem filhos do Messias, nem os pastores Eurico, Marco Feliciano, Marcos Pereira, Gildenemir, Silas Câmara, Eli Borges, Alex Santana. Nenhum deles é obrigado a falar do assunto, claro.
Nos Estados Unidos, o ex-congressista Justin Amash, árabe, libertário e cristão, perdeu vários parentes no ataque, inclusive as primas Viola e Yara, e o priminho George, ainda um bebê. Não recebeu condolências da comunidade evangélica brasileira, que certamente nem o conhece. Foi cumprimentado pela democrata Alexandra Ocasio-Cortez, sua adversária em quase todos os assuntos no Congresso, por democratas e republicanos.
Amash é filho de pai palestino e mãe síria que imigraram para os Estados Unidos, fugidos da guerra. Não esperou um dia para condenar o Hamas pelos terríveis atentados contra inocentes em Israel. Sofreu na própria família, de novo, os horrores da guerra. Ontem, publicou um vídeo que mostra a nave da igreja ortodoxa de São Porfírio intacta e o sino tocando. Lembrou-me, mais uma vez, do poema do padre anglicano John Donne:
A morte de cada homem me diminui
Porque eu faço parte da humanidade
E por isso não pergunte por quem os sinos dobram
Eles dobram por ti
Quando Jesus conta a parábola do bom samaritano (um homem impuro de um povo que não se dava com os judeus), ele pergunta aos seus discípulos “quem é o próximo do homem que foi atacado pelos assaltantes?”. “Aquele que usou de misericórdia para com ele”.