A teologia de André Janones
Evangelho e laicismo segundo o homem que vestia gravata de duas cores e camisa roxa, tem sotaque caipira e acredita que nada acontece se não for da vontade de Deus

Quando André Janones apareceu como pré-candidato à presidência empatado com Doria, Simone Tebet, Eduardo Leite e outros candidatos com muito mais cobertura da imprensa e muito mais história na política, alguns amigos ficaram em choque se perguntando quem era aquele sujeito. Eu sabia quem era porque estávamos, na minha empresa, acompanhando todos os deputados desde 2018 e em dezembro percebemos que tinha um deputado de primeiro mandato de partido nanico com sotaque caipira, terceiro mais votado de Minas, que se vestia às vezes com camisa roxa e gravata de duas cores e tinha 978 mil seguidores no Facebook. Ele já era um fenômeno desde a greve dos caminhoneiros, quando pegou um celular, foi para a estrada e começou a fazer uma live a favor da categoria que chegou a 959 mil compartilhamentos e milhões de visualizações.
Em 2020, pudemos perceber que Janones, defendendo o auxílio emergencial desde março, no início da pandemia, ganhou tanta projeção que se tornou o segundo deputado mais seguido das redes sociais. Só perdia para Eduardo Bolsonaro. E falava mais especificamente para a classe E, mais dependente do auxílio. Mas uma coisa que eu demorei para perceber foi a fé de Janones. Ele é evangélico, da Igreja Batista Lagoinha, do pastor Márcio Valadão, que já mencionei aqui nesta newsletter. Eu cheguei a catalogar os deputados e senadores evangélicos em 2020 e Janones me escapou, porque ele fala pouco de igreja.
Apesar disso, havia alguns sinais já. Em 21 de outubro de 2018, o Estado de Minas publicou uma entrevista com ele em que ele afirmava:
Politicamente, qual será a sua principal bandeira na Câmara dos Deputados?
Embora seja cristão evangélico, da Igreja Batista da Lagoinha, não me escorei em religião. Defendo o Estado laico e nunca entrei numa igreja para pedir votos. Cada um com a sua fé e pretendo atuar em defesa dos direitos de todos os brasileiros, de todas as religiões. Sou democrata, defensor da liberdade de imprensa. Vou trabalhar muito pela saúde pública e o combate à corrupção, dentro dos marcos legais e constitucionais. Como advogado me qualifico como legalista. (…)
É interessante notar essa defesa do Estado laico especialmente quando a fé de Janones não chega a ser exatamente uma fé contida. Apesar de rejeitar a ideia de entrar na igreja para pedir votos, ele demonstrou, ao longo dos últimos anos acreditar que Deus é quem conduz sua trajetória política.
Isso fica muito claro na live da vitória de Janones (reparem: 8,1 milhões de visualizações, 280 mil likes, 204 mil comentários). Ele aparece chorando com uma música gospel de fundo que foi composta por Bill e Gloria Gaither em inglês e traduzida para o português e incorporada no hinário Harpa Cristã, da Assembleia de Deus, que diz: “Porque ele vive posso crer no amanhã/ Porque ele vive, temor não há/ Mas eu bem sei, eu sei que a minha vida/ Está nas mãos do meu Jesus, que vivo está”. Janones, em meio ao choro, diz “Em primeiro lugar eu agradeço a Deus, que foi quem fez tudo. Eu sirvo a um Deus vivo, eu sirvo a Jesus, e lá atrás Jesus me dizia todos os dias que isso ia acontecer. E do primeiro ao último de campanha, tudo foi ditado por Jesus. O mérito não é meu, o mérito é dele.”
A fala pode chocar quem não entende como funciona a fé dos crentes. Como Janones conjuga o entendimento de que sua vitória é atribuída, devida a Jesus, e ao mesmo tempo diz que rejeita a ideia de pedir votos na igreja e que defende o Estado laico? A lógica por trás disso é que o evangélico atribui a Deus o poder de mover todas as coisas, de mover toda a história, de ser o Senhor de tudo o que acontece. Isso quer dizer que evangélicos dirão “graças a Deus” quando tiverem vitórias, mesmo que sejam vitórias em jogos de futebol. Mas não significa exatamente que eles acham que Deus não ajudou se perderem — na prática, eles também vão entender que de alguma forma a vontade de Deus era que não vencesse e que, de alguma forma, isso também será o melhor para aqueles que creem. A lógica do crente é que Deus está no comando de todas as coisas. Por vezes isso parece descambar para um triunfalismo que de fato é muito forte em igrejas evangélicas, para um sentimento de que você precisa ser vitorioso e que isso é sinal do poder de Deus. Mas o pensamento é levemente mais sofisticado, de que tanto na vitória quanto na derrota, Deus está no controle. Dessa forma, Janones atribui a Deus a sua vitória, dizendo que a glória é de Deus, mas também tenderia a dar glória a Deus se perdesse e entenderia que ele está no controle de tudo, e não que Deus o abandonou.
Disso decorre a coerência dessa aparente dubiedade no discurso de Janones: ele atribui a Deus sua vitória, mas não instrumentaliza Deus para vencer. Não há que se pensar que Janones culparia Deus pela sua derrota (em última análise Deus talvez até queria uma eventual derrota, mas nesse caso não é Deus que estaria errado, a derrota também seria aquilo que Deus preparou e que devemos aceitar humildemente, mesmo que nos custe entender, se estávamos fazendo a vontade dele).
Abre parênteses
(Quando alguém critica um jogador de futebol que termina um jogo dizendo que “Graças a Deus conseguimos os três pontos” é porque não consegue entender essa operação simples. Essas pessoas às vezes não perceberam que o crente mais simples também dá graças a Deus em meio a tragédias desoladoras, só por entenderem que de Deus é o cuidado com cada um para que as coisas não fossem ainda piores, ou para que você possa enfrentar o luto, ou que você tenha forças para reagir aos momentos mais tristes de sua vida. Aliás, exemplo disso é o pedido de Janones para que Deus conforte a família do Pastor Sargento Isidório, seu colega de fé e de partido, depois da morte do filho dele aos 29 anos.)
Quando Janones atribui a Deus sua vitória, isso não significa que ele acredite numa espécie de mágica ou feitiço sobre a realidade. Aliás, em outubro de 2018, ele diz num tweet, ressaltando seu apreço peça racionalidade, pela lógica e inclusive se afastando de lideranças evangélicas:
Sou Cristão evangélico e, como tal, me afasto cada vez mais dos ditos “líderes”, e busco calcar minha fé na razão, na lógica e na coerência, que também são atributos Divinos.
Essa relação com Deus que atribui a ele coisas do dia-a-dia, mas também rejeita misturar fé e política vai se repetindo ao longo do mandato de Janones. Ele por vezes pede a Jesus força para continuar lutando pelo auxílio de 600 reais, e agradece a Deus por alguma vitória em votação pelo auxílio. Ele entende que está lutando por pautas que considera justas porque está seguindo a ordem de Jesus de ser sal da terra, luz do mundo (Instagram), mas ressalta quando pode que não usará seu mandato para favorecer sua fé. É como se ele tivesse um entendimento de que cumprir o mandamento de Deus e ouvir o chamado de Jesus para fazer diferença na política é exatamente buscar o bem de todos, independente de religião, especialmente dos mais pobres.
E aí chegamos à estratégia de Janones para criticar Bolsonaro. Janones, em seu entendimento simples, mas muito preciso da mentalidade evangélica, tentou explicar numa frase marqueteira uma diferença entre uso da fé para ganhar dividendos políticos e do reconhecimento de que a fé também tem precedência, para todos que creem, sobre qualquer acontecimento político. Nesse tweet do dia 17 de agosto, Janones diz: “Bolsonaro usa Deus. Deus usa Lula!”
Parece chocante para quem não acredita em nada e parece só uma mistura de religião e fé com sinal invertido. Mas tem uma sutileza da simplicidade do filho da empregada doméstica que conseguiu entender como pensam os crentes e pobres. Até o bolsonarista mais aguerrido, se acreditar em Deus, não poderá dizer que Deus não é capaz de usar até mesmo um adversário. Se Janones dissesse que Lula é um ungido de Deus, um escolhido de Deus, ele estaria sugerindo um poder extraordinário a Lula que ele não poderia garantir. Mas ao dizer que Deus usa Lula, ele não deixa de remeter a vários relatos bíblicos nos quais o povo de Deus entende que Deus usou adversários, estrangeiros, descrentes, para fazer sua vontade. Na bíblia, Deus usa até Faraó, que era o soberano opressor do povo hebreu, para fazer sua vontade. Enquanto alguém que arroga para si ser o único vetor do poder de Deus está, na visão de muitos crentes, tentando usurpar a glória ou o poder de Deus e usá-lo para obter vantagem pessoal.
Obviamente, para os evangélicos, é de certa forma tentador, ao ver alguém usar o nome de Deus e se apresentar como profeta, como alguém que vem em nome de Deus, seguir o que diz essa pessoa. Porque ele pode acreditar que essa é pessoa de fato foi enviada por Deus. Quando Janones faz essa provocação contra Bolsonaro e tenta acenar para o eleitorado evangélico apresentando Lula como alguém que pode ser instrumento de Deus, ele faz uma reivindicação, uma alegação muito mais fácil de sustentar do que a alegação de que só um lado representa o bem.
Janones está tentando fazer com que Lula dialogue com as pessoas que têm fé, ainda que isso não signifique usar o Estado para promover uma fé ou, principalmente, usar o púlpito como palanque.
Muito bom, André! Um amigo (Matheus A.) me recomendou a sua newsletter. Li todos os textos com muito interesse. Tem sido muito bom aprender a lógica evangélica pelas suas palavras. Já no aguardo do próximo!